quinta-feira, 24 de março de 2016

Escritor com três obras-primas


O escritor Daniel Defoe (cujo nome de batismo era Daniel Foe, sem o “de” à frente do sobrenome) nunca deixou de se considerar (e de ser), antes e acima de tudo, jornalista. Isso mesmo quando deixou de exercer o jornalismo, que lhe deu muita dor de cabeça (inclusive a prisão) por suas críticas e denúncias contra os poderosos de então, sobretudo a rainha Anna. Não se poderia esperar outra coisa. Afinal, não se poderia esperar que em pleno século XVII houvesse liberdade de imprensa, mesmo numa Inglaterra que sempre se mostrou tolerante com o direito dos cidadãos à própria opinião. Os tempos eram outros, menos livres e maia opressivos.

Daniel Defoe legou à posteridade três grandes livros, três obras-primas, todos de muito sucesso – tanto que são, volta e meia, reeditados e com público cativo – posto que com escala decrescente de êxito. Se for levado em conta, apenas, o aspecto lucratividade, “Robinson Crusoe” é imbatível. Lançado em 1719, em forma de folhetins, de encarte do jornal “The Daily Post”, fez história logo de cara, antes mesmo da publicação do último capítulo: foi o primeiro romance de todos os tempos a ser publicado dessa forma. Só muito tempo depois, tanto na Inglaterra quanto em outras partes do mundo, outros livros de ficção foram publicados dessa forma, para que leitores colecionassem esses capítulos separados até completarem, volume completo. Foi uma engenhosa fórmula que os donos de jornais passaram a adotar, após a publicação de “Robinson Crusoe”, para aumentar as vendas de seu produto. E, de fato, aumentaram.

Caso, no entanto, se olhe para o aspecto da polêmica, o romance “Moll Flanders” bate, de dez a zero, os outros dois. Vendeu, é certo (e continua vendendo) menos do que Robinson Crusoe. Mas destacou-se pela ousadia. Daniel Defoe criou uma personagem feminina ativíssima e bem sucedida, que de prostituta em Londres, foi exilada para a América (os atuais Estados Unidos) e fez fortuna, numa época em que a mulher era considerada um ser frágil e de baixa capacidade intelectual. Até hoje, muito imbecil preconceituoso ainda pensa dessa maneira. No início do século XX, o prestigioso crítico literário, Iann Watt, considerou Moll Flanders uma criatura “masculinizada”. Ora, pois, pois...

Porém, em termos de qualidade literária, a maioria dos críticos (e me incluo entre eles) considera que o melhor livro de Daniel Defoe, disparado, é, justamente, o que vendeu menos dos três: “A journal of the plague year” (edição inglesa) ou “Diário do ano da praga” (título da edição espanhola) ou “Um diário do ano da peste” (na edição brasileira). O nome não importa. Todos eles referem-se ao mesmo romance. Aliás, há uma curiosidade a esse propósito, que não me custa trazer à baila, embora fuja do assunto específico destes comentários. Os títulos de livros, na época de Daniel Defoe (o que persistiu por muitos anos) eram “quilométricos”. Robinson Crusoe, por exemplo, foi lançado como “The Life and Strange Surprizing Adventures of Robinson Crusoe, of York, Mariner: Who lived Eight and Twenty Years, all alone in an uninhabited Island on the Coast of America, near the Mouth of the Great River of Oroonoque; Having been cast on Shore by Shipwreck, wherein all the Men perished but himself. With An Account how he was at last as strangely deliver’d by Pyrates” (primeira edição em inglês). Ufa!!! No Brasil (e em todas as outras partes do mundo) foi, prudentemente, encurtado. É, hoje, simplesmente, “Robinson Crusoe”.

Com Moll Flanders não foi diferente. A história se repetiu. Esse livro foi lançado com este título (já traduzido para o português): “Aventuras e Desventuras da Famosa Moll Flanders & Cia., que viu a luz nas prisões de Newgate e que, ao longo de uma vida rica em vicissitudes, a qual durou três vezes vinte anos, sem levar em conta sua infância, foi durante doze anos prostituta, durante doze anos ladra, casou-se cinco vezes (uma das quais com seu próprio irmão), ficou exilada durante oito anos na Virgínia e que, enfim, fez fortuna, viveu muito honestamente e morreu arrependida; vida contada segundo seus próprias memórias”. Como se vê, o autor resumiu o enredo no próprio título. Hoje, não há (felizmente) a mínima chance disso ocorrer.

E com o “Um diário do ano da peste” foi diferente? Foi nada!!! Esse livro intrigante, repleto de informações curiosas, foi lançado com este título, embora mais curto que os dois anteriores: “Diário do ano da peste, observações ou memórias das ocorrências mais notáveis, públicas e privadas, que aconteceram em Londres durante a última grande provação em 1665”. Anthony Burgess, autor de “Laranja mecânica”, entre outras obras, escreveu o seguinte sobre este intrigante e emblemático livro do escritor-jornalista (ou jornalista-escritor, como queiram): “O Diário é o protótipo de todas as obras que mostram o homem, individual ou coletivamente, diante do terror. Defoe é um olho sem sono, uma pena incansável. Sua escrita interpõe a mais fina textura entre o leitor e os acontecimentos”. Eu só acrescentaria: “Pena que não alertou o leitor que era ficção, baseada em fatos reais e não reportagem, como deu a entender.”.

Boa leitura.


O Editor.

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Um comentário:

  1. Esses grandes cérebros que saltam do meio dos outros e ficam séculos, diariamente, presentes. Como entendê-los?

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