domingo, 13 de março de 2016

Epidemia de peste extinta por um grande incêndio


A Inglaterra – como ademais praticamente todas as regiões do mundo e, especialmente da Europa – foi cenário de inúmeras epidemias. E não somente de peste bubônica, mas também do cólera, varíola, tifo etc.etc.etc., todas com absurda quantidade de mortos no seu rastro. As condições sanitárias no país, incluindo Londres, eram péssimas. Não havia qualquer preocupação com medidas de higiene, nem mesmo as mais primárias, hoje até mesmo instintivas, o que favorecia o surgimento de vários agentes patogênicos, tanto vírus quanto bactérias. Por exemplo, esgoto corria solto nas ruas das principais cidades (incluindo a capital), praticamente todas sem calçamento, que se transformavam em imensos lodaçais em épocas de chuva – que ali eram (e ainda são) freqüentes. Lixo acumulava-se por toda a parte, propiciando grande população de pragas, sobretudo de ratos, baratas, pulgas e percevejos, entre tantas outras. A proporção de roedores, por exemplo, estimada por cronistas da época, seria de cinco para cada habitante da cidade (e desconfio que essa cifra era super, hiper, mega subestimada).

Somado a tudo isso, a Medicina era tão tosca que mal merecia essa designação. Era mais uma prática empírica, na base de tentativa e erro, que propiciava, ademais, a existência de uma legião de charlatães. Até meados do século XIX, desconhecia-se, até mesmo, a simples existência de vírus e bactérias, causadores das diversas doenças (epidêmicas ou não).  Seria de se estranhar, pois, se não ocorressem tantas, tão freqüentes e catastróficas epidemias com estas condições. O ambiente era para lá de propício para isso. Esta era, claro, a realidade não somente da Inglaterra, mas praticamente do mundo todo. Nem é preciso ressaltar que nos grotões miseráveis da Europa, Ásia, África e das Américas as coisas eram muito, muitíssimo piores. Mas tratemos, pelo menos por enquanto, de uma epidemia específica que devastou a população de Londres. Não me refiro à pandemia de 1347, que por muito pouco não transformou a Europa (pelo menos sua maior parte) em um “continente fantasma”. A epidemia que trago à baila foi a dos anos de 1665 e 1666 que, por paradoxal que pareça, foi contida e debelada não por eficazes medidas profiláticas (longe disso), mas por outra catástrofe de dimensões épicas: um monstruoso incêndio, de quatro dias de duração, que transformou Londres num inferno.

A epidemia, sozinha, causou a morte de cerca de 75 mil pessoas (e tenho sérias dúvidas sobre estimativas desse tipo, que raramente são minimamente exatas), de acordo com relatos de escritores da época. A peste estava incontrolável, fazendo, diariamente, dezenas, centenas, milhares de vítimas fatais. Mas eis que, em setembro de 1666, outra tragédia, a do fogo, viria se somar à mortal doença. Durante quatro desesperadores dias, as chamas devoraram, num piscar de olhos, e reduziram a cinzas mais de treze mil casas, oitenta e sete igrejas e deixaram um número estimado de oitenta mil londrinos desabrigados. E o desastre não foi causado por nenhum piromaníaco maluco, com complexo de Nero. O incêndio, que começou em uma padaria, foi absolutamente acidental, conforme apuraram as autoridades.

Embora o fogo tenha matado até mais pessoas do que a peste, acabou evitando, por estranho que pareça, uma catástrofe potencialmente muito maior. Destruiu vários bairros insalubres, com longo histórico de servirem de foco para diversas epidemias anteriores (inclusive esta, de 1665). Tanto isso é verdade que depois do incêndio, a peste bubônica cessou por completo, como que num passe de mágica. Centenas de milhares de ratos foram, também, providencialmente imolados deixando de contaminar, dessa forma, uma incontável quantidade de pessoas. Dois londrinos, de perfis completamente diferentes, legaram-nos relatos diferentes sobre a epidemia de 1665: Samuel Pepys e Daniel Defoe.

O primeiro foi um funcionário público que nunca pensou em ser escritor. Já o segundo, tornou-se expoente da Literatura inglesa, com livros que ainda hoje vendem aos milhões, como “A vida amorosa de Moll Flanders”, “A journal of the plague year” e, sobretudo, “Robinson Crusoe”. Todavia, o relato que merece credibilidade é, sem dúvida, o de Pepys e por diversas razões. Cito, apenas, duas delas. A primeira é que testemunhou tanto a epidemia, quanto o grande incêndio de Londres. A segunda, que registrou a evolução das catástrofes dia a dia, em um diário que deu o que fazer aos pesquisadores para decifrá-lo, já que foi escrito taquigraficamente. Estava claro que nem lhe passava pela cabeça que esses registros fossem transformados em um livro. Mas foram. Isso, porém, exigiu um trabalho danado. Foram necessários dois séculos completos para que aquilo que esse homem escreveu fosse transcrito para a linguagem comum. Seu diário, transformado em livro, só teve versão definitiva em 1970, ano em que foi, finalmente, publicado. Tratarei, oportunamente, desses registros, feitos por nove anos e que só foram interrompidos porque Pepys foi acometido de uma grave doença nos olhos, que o deixou praticamente cego.

Já o texto de Daniel Defoe não merece tanta credibilidade e por um motivo muito simples. Embora tenha sido, reconhecidamente, ótimo escritor e competente jornalista, tinha, somente, cinco anos de idade quando a epidemia ocorreu e seis quando se deu o grande incêndio de Londres. Tudo o que cita, portanto, é, digamos, de “segunda mão”, conseqüência de pesquisas, e não de vivência. São, todavia, apesar das restrições a Defoe, textos que merecem comentários detalhados e cuidadosos, por nos revelarem como era a Londres por ocasião dessas duas catástrofes, o que me proponho a fazer na sequência.

Boa leitura.


O Editor.

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