sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Os 71 anos de Soledad Barrett

* Por Urariano Mota


Para quem não sabe, Soledad Barrett Viedma foi uma socialista paraguaia, grande e bela mulher, que viveu no Recife. Companheira, esposa do Cabo Anselmo, que a entregou, grávida, para a repressão da ditadura em 1973.

Sobre o livro que escrevi inspirado na sua pessoa, posso agora falar três coisas. A primeira delas é que “Soledad no Recife”, publicado em 2009, é a soma de várias buscas, derrotas e terror. Buscas num sentido maior que o de pesquisas, entrevistas, descobertas e enganos. A maior busca foi achar o tom, a fala, o caminho que me fizesse correr sem tropeços na escrita. Isso não foi nem é fácil, porque significa o escritor achar a voz da narração, a voz do narrador. No dia em que observei que o narrador - para o caso de “Soledad no Recife” - devia falar na primeira pessoa, foi um acontecimento na minha vida. Quando percebi que o livro andava então sem artifício, sem artificialismos, a vontade que tive foi de soltar fogos, soltar uns foguetes, que no sudeste do Brasil chamam de rojão. Eu fiquei contente e feliz, a ponto de anotar na margem do caderno: achei o caminho!

As derrotas acumuladas vêm antes e durante o processo da escrita de Soledad. Quando trabalhei no romance anterior, “Os Corações Futuristas”, o clímax se dava na repressão e assassinatos do ano da desgraça de 1973. E tentei, ali, abordar a figura e espectro do Cabo Anselmo. Fracassei. Quando tentei escrever sobre Soledad pela terceira vez, pude ver que a tragédia de Sol se unia ao papel do vilão Anselmo. E em vez de condená-lo de modo apriorístico, pus-me a estudá-lo e o persegui em reflexões e vídeos e livros e entrevistas. O resultado parece que não foi mal, ao tentar flagrar o processo da sua consciência. Sim, até Anselmo tem consciência. Esperta, egoísta e canalha.

Já o terror veio, primeiro, porque aqueles anos da ditadura Médici são o máximo do terror de Estado no Brasil. Hoje, quem é jovem não sabe. O terror é um rapaz de 22 anos  - “era um rapaz de 25 anos”, cantava Gil no tropicalismo -, é você não ter projeto para os próximos 5 anos, porque os seus amigos e conhecidos estão sendo mortos e caçados, porque as pessoas mais altas na sua afeição caíram na clandestinidade, e ninguém sabe se morreram ou se já estão sendo torturados, e abriram o seu nome sob tortura. Ora cinco anos... você não se projetava nem um ano mais de vida.

Você poderia ser o próximo.

O terror era também o terror da neurose, era andar pelas ruas decorando placas de carros, para ver se se repetiam mais adiante, ou se batiam com placas anotadas por outros companheiros, de veículos que sequestravam militantes.  O terror, ainda, era extrair dentes sem anestesia no dentista, para se acostumar à dor quando fosse preso. Eram tantas formas de terror, que lembradas hoje chegam às raias do cômico. Mas o cômico era trágico, real e doía muito, até a degradação humana.

E mais: o  terror também continuou na escrita do livro, porque as pessoas que testemunharam o massacre de 1973, que conheceram o Cabo Anselmo e Soledad Barrett,  se negavam a falar, desconversavam, porque ainda hoje Anselmo e sua gang estão ativos.

Mas um escritor não tem o direito de ser covarde na escrita. Um escritor pode ser covarde como pessoa física, nas ruas, na briga do trânsito, ou na briga do bar. Mas ele não pode se acovardar quando escreve. Ou será apenas um burocrata, um escrevente de cartório, um corrompido na alma. A pior forma de corrupção.



Artigo publicado no jornal “Diário de Pernambuco”, em 22 de fevereiro  de 2016.



* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”.  Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.




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