domingo, 21 de fevereiro de 2016

Onde está a honestidade?


* Por Mouzar Benedito


Ando me lembrando muito da música de Chico Buarque em que um pai conta que o filho lhe traz presentes todos os dias.

Um dia é um relógio, outro dia um anel de ouro, bolsa, óculos de sol… “É o meu guri”, diz o pai orgulhoso e ingênuo, que não sabe que o menino rouba.

É que se tornam cada dia mais comuns notícias de meninos que roubam, fazem sequestros relâmpagos e, além do dinheiro sacado em caixas eletrônicos, fazem um monte de compras em shoppings com cartões das vítimas.

Será que os pais não imaginam que aquilo que levam para casa, como tênis caros, roupas caríssimas, joias e outras coisas são roubadas?

Será que sabem que os filhos são ladrões e fecham os olhos para isso? Será que sabem e incentivam os filhos a roubar?

Há alguns anos, duas meninas de pouco mais de dez anos de idade foram pegas roubando, na Vila Mariana, em São Paulo. A polícia chamou a mãe, que morava na periferia, e entregou as meninas a ela.

Pouco tempo depois, elas foram pegas novamente, roubando no mesmo bairro, e a mãe foi à delegacia, chamada pela polícia. Lá, deu uma baita bronca nas meninas, dizendo que elas eram burras por roubarem no mesmo lugar onde já foram pegas antes. Que seriam facilmente reconhecidas etc.

Quer dizer: para ela, as filhas serem ladras não era problema. O problema era que eram incompetentes para roubar.

De vez em quando, muito raramente, a gente vê mães indignadas quando descobrem que o filho rouba. Vi na TV uma que ficou abaladíssima, tentou bater no moleque na delegacia, esbravejando que ela e o marido trabalhavam pra burro pra dar uma vida decente e uma educação adequada ao filho e ele se transformava num bandido.

Outros tempos e outros lugares

Vim para São Paulo há muito tempo. Na década de 1960, tinha o hábito de andar a pé, de madrugada, pelas ruas vazias do centro. Nem me passava pela cabeça ser assaltado.

Numa época em que morava na avenida 9 de Julho, às vezes ia a festas em bairros distantes, voltava para casa de madrugada, depois de beber bastante, descia do ônibus no centro e, sem dinheiro para um táxi, continuava o caminho a pé. Acontecia de ficar com sono e cansado. Então parava pra cochilar. Sem medo nenhum.

Claro que já aconteciam roubos, mas eram raros. Nunca comigo.

Algumas recessões depois, desemprego, mudanças de conceitos e de comportamentos, a coisa foi piorando.

Como jornalista, no final dos anos 1980, soube de fatos que começaram a me provocar para escrever um romance. Tinha até o nome na cabeça: “Pobres, porém perversos”. Trataria de coisas como:

1) Numa época houve muitas ocorrências de assalto a operários que saíam de madrugada para trabalhar. Dinheiro? Não! Levaram suas marmitas! “Isso sim, é crime hediondo! Roubar marmita de trabalhador pobre!?”, exclamei;

2) Vizinhos de um conhecido meu, na Cidade Tiradentes, roubaram o tanquinho de lavar roupa que ele tinha comprado dias antes. Ele sabia quem roubou, mas não podia ousar denunciar;

3) Numa favela de Osasco, um sujeito roubou o botijão de gás da vizinha. Ela reclamou e foi ameaçada de morte;

4) Vi, pessoalmente, uma mulher instruindo uma menina, sua filha, para roubar.

Paro por aqui, mas há muito mais casos desse tipo. E não é só com pobres. Rapazes ricos foram presos (e soltos logo em seguida – o delegado “compreendeu” o que faziam) assaltando entregador de pizza.  O filho de um conhecido meu, da zona norte paulistana, foi cercado por um grupo de meninos de classe média que lhe deram uma surra covarde e roubaram seu tênis. Soube depois que era “diversão” deles. Faziam isso sempre.

Conclusão: a “crise moral” era agravada pelo desemprego e pela pobreza, mas não era coisa só de pobres. Ricos faziam a mesma coisa, sem necessidade, então eram piores. Roubavam por prazer, não por necessidade. E eram sádicos.

Mesmo assim escrevi o romance com o título imaginado, mas com outro conteúdo. Lembrei-me das repúblicas e pensões em que morei, com outros jovens pobres. Era uma vida muito dura e uma maneira de ajudar a sobreviver, em termos psicológicos, era um sacanear o outro, com brincadeiras e safadezas nada igualáveis a essas coisas. E tinha uma questão política por trás de tudo.

Volto ao tema do início, mas com outra perspectiva, duas coisas positivas. Uma é de quando estava em Assunção, no Paraguai, acho que em 1986.

Havia dois jornais diários na cidade. Um custava duzentos guaranis e o outro, cem guaranis. Eu comprava sempre o de duzentos, melhorzinho um pouco. Quem vendia eram meninos, jornaleiros.

Um dia, peguei o jornal de cem guaranis, por engano, dei duzentos pro menino e saí andando. Ele correu atrás de mim para dar o troco. Fiquei espantado. No Brasil as coisas já não estavam bem desse jeito. Trombadinhas já eram comuns em São Paulo. Lá, não. Depois dessa compra de jornal, várias vezes, fingi esquecer o troco com meninos que vendiam também tererê (chimarrão gelado), empanadas e outras coisas. TODOS correram atrás de mim para dar o troco.

A outra lembrança é de quando tinha uns doze anos de idade e fui passar uns dias numa cidade vizinha, onde moravam meus avós.

Tinha uma quermesse nesse lugar e, como não tinha que fazer nada lá, trabalhei ajudando um conterrâneo meu que montou uma barraca de jogo de argola. Ganhei uma graninha.

Chegando em casa, mostrei o dinheiro pra minha mãe, todo animado. Ela ficou intrigada, perguntando onde consegui aquilo. Contei como ganhei o dinheiro, honestamente. Apesar dela confiar em mim, fiquei sabendo que foi perguntar ao dono da barraca, que confirmou tudo.

Aí eu é que pedi explicação. Disse que se eu tivesse ganhado a grana com alguma mutreta e ela não se importasse, estaria me incentivando a ser um marginal. Ia crescer achando que roubar era normal.

Fiquei pasmo

Tudo isso que “falei” foi para contar que, apesar de saber que o roubo parece ter virado coisa normal, rotineira, seja para criança, jovem, adulto ou idoso, do sexo masculino ou feminino, ainda me surpreendo com certos casos.

Há notícias de idosos com cara de bons velhinhos que roubam apartamentos, meninas com cara de classe média também… Isso sem contar coisas mais escabrosas, de jovem que mata o pai, mãe, avô, avó ou o que for, para acelerar o recebimento de herança. Gente no mínimo de classe média alta.

Essas coisas, cada vez mais comuns e frequentes, me dão a impressão que quando certas pessoas precisam de dinheiro nem passa pela cabeça delas ganhar algum honestamente. Partem logo para o crime. Quando é só roubo, o roubado fica aliviado se não sofre violência.

Geralmente ficamos sabendo desses casos pelo noticiário, mas às vezes acontecem onde a gente está.

Enfim, aí vai um caso que me surpreendeu, ainda mais porque eu estava presente quando aconteceu: há alguns dias, estava na sala de espera de uma dentista no bairro de Pinheiros, em São Paulo, entrou um homem com uma mochila e perguntou à recepcionista se atendiam crianças ali. Ela respondeu que sim, ele falou que ia buscar o menino, mas antes disso precisava passar no banheiro.

Usou o banheiro e saiu. Pouco depois começou a entrar água na sala, vinda do banheiro. A recepcionista foi ver, o sujeito tinha roubado a torneira…

Fiquei impressionado! Mas contando isso para algumas pessoas, elas me contaram um monte de casos semelhantes, com roubos desde lâmpadas até válvula de descarga.

Com certeza, vou continuar me surpreendendo com as novidades na prática dos roubos, por mais que espere sem-vergonhices de todos os tipos.


* Jornalista

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