quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

O calmante virou febre

* Por Luciane Evans


Tristeza, ansiedade, insônia e angústia sem motivos aparentes têm tornado muita gente dependente de um medicamento tarja preta com índice de dependência maior ou semelhante ao álcool e à cocaína. Levantamento inédito do Sindicato dos Farmacêuticos de Minas Gerais (Sinfarmig), obtido com exclusividade pelo Estado de Minas, aponta que o uso de Rivotril, cujo princípio ativo é o clonazepam, explode na rede pública das 10 cidades avaliadas, que consumiram juntas mais de 15 milhões de comprimidos distribuídos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em 2012. Chama a atenção o consumo em cidades pequenas, como Bonfim, na Grande BH, onde só no ano passado foram distribuídos 70 mil comprimidos para os pouco mais de 6 mil moradores, uma média de 10 para cada.

A realidade acende o alerta na classe médica, que tenta encontrar justificativas para os dados que vão desde falta de tolerância das pessoas em lidar com as frustrações até a prescrição equivocada dos médicos. A droga, prescrita a quem sofre de ansiedade, insônia e depressão, é a tarja preta mais consumida no Brasil. Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), só em 2011 foram 18,45 milhões de caixas com 30 comprimidos (553 milhões de pílulas) vendidas nas farmácias particulares no Brasil, um aumento de 36% em relação a 2010. Cada uma pode custar até R$ 10.

Por se tratar de medicação controlada, só é adquirida com receita. “Os dados da Sinfarmig se referem aos remédios distribuídos pelo SUS, não contemplam as compras feitas em farmácias privadas. Por isso, a situação é perigosa. Trata-se de um consumo expressivo e um grave problema de saúde pública que merece a atenção das autoridades”, afirma o diretor do sindicato, Rilke Novato Públio, acrescentando que as doses causam dependência e efeitos colaterais, como sonolência, dificuldades no processo de aprendizagem, perda da memória e até parada cardíaca.

“Se me tirarem essa droga, não dormiria nunca mais. Sou viciada”, avisa Luciana Vieira, de 34 anos, moradora de Bonfim, na Grande BH. Desde 2007, quando apresentou sintomas de depressão, ela toma o remédio. “Não conseguia dormir, ficava ansiosa e muito triste. Desde então, tomo dois comprimidos toda noite”, conta. Ela diz que há algum tempo a medicação passou a não fazer efeito e o médico optou por outros antidepressivos associados ao Rivotril. “Aqui na cidade todos tomam. Não temos muito o que fazer, não há lazer para nós”, reclama Luciana, preocupada com efeitos da medicação. “Outro dia, não sentia mais os meus braços.”

Nelson Parreiras Lara, de 57, também morador de Bonfim, conta que há seis anos toma a medicação e tem aumentado o uso. Hoje toma quatro por dia. Ele mostra os pés inchados, que, segundo ele, são resultado dos comprimidos.

Preocupada com a realidade, a recém-empossada secretária municipal de Saúde, Rose Marie Marques, diz que vai estudar o assunto a fundo. “A quantidade de consultas para a psiquiatria também é alta. É curioso tantas pessoas usarem uma medicação forte como essa”, desconfia.

Em Piedade dos Gerais, a demanda por Rivotril aumenta 10% a cada ano, segundo a Secretaria Municipal de Saúde. Esta semana, os comprimidos estavam em falta no único posto de saúde da cidade, mas havia a medicação em gotas. “A demanda é alta. Mais de 70% dos moradores são dependentes da medicação”, lamenta o secretário de Saúde de Piedade dos Gerais, Vicente Nicodeno dos Santos. Os profissionais de saúde dizem estar de mãos atadas. “O número é bem maior. Sabemos que pacientes passam medicações para os vizinhos e amigos. Além disso, há os que compram em farmácias até sem receita”, alerta a farmacêutica Simone Amorim. Segundo ela, uma caixa com 30 comprimidos é suficiente para um mês, “mas poucos tomam uma pílula por dia. Geralmente, são três ou quatro.”

São pessoas dependentes há muito tempo. “Não temos o que fazer. Se tirarmos a medicação, é possível que tenham um surto”, comenta o clínico geral do município, Geraldo Carlos Caixeta.

“Piedade dos Gerais é tranquila, mas há uma ansiedade, uma tristeza”, comenta Graça Francisco de Jesus, de 64 anos, que há sete anos toma os comprimidos. “Meu filho, Rômulo, de 9 anos, teve diagnóstico de depressão. Os médicos receitaram Rivotril, e ele está dormindo bem e não chora tanto”, conta Gesiane de Oliveira, que durante a gravidez diz ter tido depressão. “Aqui, quase todo mundo tem.”

Se por um lado, a ociosidade é apontada como um dos motivos para a explosão do uso de Rivotril em municípios menores, por outro, nos maiores, como BH e Santa Luzia, o estresse, somado a diagnósticos equivocados, pode ser o grande vilão. E a tendência, segundo previsão do Sindicato dos Farmacêuticos de Minas Gerais (Sinfarmig), é um aumento significativo do consumo da droga neste ano. Só em Belo Horizonte, onde, segundo o levantamento da entidade, foram distribuídos 8,6 milhões de comprimidos no ano passado pela rede pública, uma média de 3,7 comprimidos por habitante, a expectativa é de que esse consumo chegue a 17 milhões, quase nove pílulas para cada belo-horizontino.

“É, certamente, um número alto”, reconhece, preocupado, o terapeuta comunitário da Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte, Luciano Carneiro de Lima. Ele, juntamente com uma equipe do Programa de Saúde da Família (PSF) da capital, fez, em 2009, uma monografia para o curso de especialização na área, em que constatou que a maioria dos pacientes que usa benzodiazepínicos, classe de medicamentos da qual o Rivotril faz parte, não se lembra por que começou a usar a medicação e não recebeu orientação médica para o uso. “O remédio deveria ter dia certo para começar e terminar. O ideal é o profissional de saúde começar com uma dose alta e ir diminuindo”, diz.

Na opinião do especialista, a realidade da capital reflete um tormento da sociedade. “Vivemos em um mundo cada vez mais consumista, as pessoas procuram soluções rápidas e estão pouco tolerantes às frustrações. Por sua vez, os médicos não sabem dar outras respostas, pois muitos saem despreparados das faculdades e ao verem um paciente chorando em seus consultórios logo prescrevem a droga”, critica.

A observação é também a do assessor técnico em saúde mental da Secretaria de Estado de Saúde e diretor da Associação Mineira de Psiquiatria, Paulo Repsold: “Há ginecologista, clínico-geral e outros especialistas que prescrevem o clonazepam”.

Na família do advogado Lourenço Rabelo, de 26 anos, morador de BH, todo mundo usa. “Minha mãe, meu padrasto, irmão e meus tios. E todos estamos tranquilos. Comecei a tomar Rivotril há seis meses, por causa da ansiedade e da insônia. Com a medicação, consigo dormir e acordo bem disposto”, conta.

A preocupação de Paulo Repsold é que o remédio vicia muito rápido. “Ele é mais fácil de viciar do que o álcool e a cocaína. O paciente não pode largar a medicação de uma hora para outra, pois entra em síndrome de abstinência.”

Outro alerta do especialista é que o Rivotril pode representar um tratamento para depressão pela metade. “Ele não é um antidepressivo, mas atua associado aos que são. No entanto, ao medicá-lo para tratar a doença, há o risco de a depressão não estar sendo tratada. Para a doença, vai funcionar como analgésico, assim, a pessoa continua deprimida, sem concentração, mas está tranquila e calma”, alerta.


* Jornalista

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