quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Devaneios de uma roqueira 17

* Por Fernando Yanmar Narciso


CAPÍTULO 8 (PARTE 1/3)


Intrusa chegando!

Ai, que falta de jeito... Tomara que Alexia não ligue de eu escrever uma história tão longa no box de comentário do blog dela... Xereto os escritos dela de quando em vez e, pelo que ela conta, ‘ocêis’ devem pensar que eu sou uma jararaca, uma ‘muié’ daquelas que ninguém tolera ter por perto, né? Desde nenê eu ‘impricava’ até com minha sombra. Deve ser por causa do meu sangue de índia guerreira, sei lá...

Acho que fui a primeira criança que Lex viu depois de nascer, desde então temos sido quase como irmãs. Somos duas matutas maltrapilhas e antissociais. Eu mais do que Lex. Não sei o que se passa comigo e acho que já nem dá mais tempo pra tentar mudar. Quem não pode pagar terapia vai pro bar, como meu pai falava...

‘Nóis’ vivia brincando pelas ladeiras da cidade ou no Casarão da Paz, ouvindo os discos da década de 60 de Seu Xamã e Vó Ganesha. Foi com a coleção de discos deles e o fumacê mágico dos incensos caseiros deles que a gente aprendeu a tocar, falar inglês e fundou as Margaridas Psicóticas há quase vinte anos.

‘Ocêis’ já notaram que prima tem um gosto pra rock bem mais, digamos, ‘vândalo’ que o meu. Toda banda que ela curte segue o mesmo padrão de vocalistas: Magricelos mauricinhos, mas que rugem como leões. A mesma tara incontrolável que ela tem pelo nerd do Kurt Cobain eu tenho pelo Jim Morrison. E, confidencialmente, só entre ‘nóis’, pelo Sebastian Bach do Skid Row. Ai, que vergonha...

‘Pobremas’ com os pais já são marca registrada da família Moura Bernardes, ‘num’ tem alguém da nossa geração sem eles. Como Alexia sofreu quando menina! Tudo que ela conta sobre tia Maria Ibanez é verdade, talvez até pior. Aquela velha doida... Onde já se viu, fingir que a filha ‘num’ existe só porque o marido morreu assistindo o parto!

A memória de infância que ficou tatuada em minha cabeça foi a de tia Maria sentada à mesa da sala com o forro imundo e rasgado, bebendo, fumando Hollywood e ignorando a presença de Alexia chorando no pé dela, implorando por atenção... Por causa desse desprezo, prima foi praticamente criada comigo por minha mãe, Florisbela, aqui em São Modesto, enquanto tia Maria continuava catatônica lá em ‘Belzônti’.

Se Lex ainda se queixa da falta de atenção materna, prefiro me queixar do EXCESSO de atenção que a minha me dava. Não que ela fosse superprotetora ou algo assim... Ela tinha um sonho maluco na juventude: Ser a primeira índia a representar o país nas olimpíadas, pela delegação de ginástica artística. Claro que ela ‘num’ dava nem pro cheiro, mas mamãe continuava insistindo, treinando... Até que um pé quebrado jogou um balde d’água fria no sonho dela.

Acham que isso faria mãe desistir? Fuck no, como diria Lex. Adivinhem quem ela escolheu como seu ratinho de laboratório? Bem que eu me esforçava no início, afinal qual filha ‘num’ quer ver a mãe feliz? Mas além de ficar ridícula enfiada num collant, eu tinha a graça e a leveza de um dinossauro nas acrobacias. Uma pata manca das boas!

Junto a isso, quis o destino que eu virasse a pessoa mais alta e desengonçada da família inteira logo aos onze anos. Um ‘grampão’, como Lex ainda me chama. Dona Florisbela nunca me perdoou por ‘num’ poder viver o sonho maluco dela através de mim...

Desde aquela época nossa relação foi derretendo, mas nada podia ter me preparado pra próxima cartada de Florisbela. Foi, foi... Encurtando a história, foi algo que ‘num’ tem nome. Se der tempo eu conto ‘procêis’...

Trabalho e moro desde os 22 lá no Posto Mato Seco, quando meu pai, Seu Totonho, se aposentou e me obrigou a assumir o negócio. Me fez de refém! Papai é um caso parecido com o de tia Maria Ibanez. Como Lex já contou, ele quase foi o prefeito de São Modesto quando a gente era menina. Daí o governador asfaltou uma linha reta ligando ‘Xisdifora’ a Modesto e isolou o posto no meio do mato, numa pindaíba que até hoje ‘nóis’ luta pra fechar a conta.

Quanto mais o posto apodrecia, mais papai se afogava na bebida e mais a gente ficava na miséria. Cansei de ir com mãe arrastar o ‘véio’ quase em coma alcoólico pra fora do botequim. E ainda me perguntam como consigo humilhar tantos brutamontes na queda-de-braço... A coisa que eu mais quero no mundo é tocar fogo naquela desgraça de posto e assistir ao show com óculos 3D, tomando Drury’s...

Mas eu sei. Eu sinto... Os olhos do ‘véio’ tão por toda parte. Me perseguem nos meus sonhos... Uma vez ele me disse que ‘num’ havia nada no mundo que ele amasse mais que o posto de gasolina. Tenho certeza que se eu tentar fazer alguma coisa com aquele prédio mofado e caindo os pedaços a alma de meu pai vai me assombrar pra sempre!

Há muito tempo ‘num’ consigo conviver numa boa nem com ele e nem com mãe. Pra ser sincera, em todas as nossas últimas conversas a gente deixou o sangue ferver e deu vexame diante de toda a cidade. A última vez que eu e mãe nos falamos foi na comemoração da virada do ano passado, e precisaram usar a mangueira de incêndio de dois prédios pra conseguir apartar a briga no meio da rua.

Água gelada escorrendo pelas pernas, um frio de 5° na madrugada, ter de ir andando dez quilômetros de volta pra casa, podem imaginar? E cá tô eu, dobrando a esquina pra tentar pedir esmola pra minha mãe... É a vida!

CONTINUA...

* Escritor e designer gráfico. Contatos:
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