quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

A cor do passado


* Por Pedro J. Bondaczuk


As nossas reminiscências têm muito de fantasia e de emoção e pouco, ou quase nada, de exatidão e de realidade. Daí considerar o memorialismo e as autobiografias mais como obras de ficção, com pitadinhas discretas de fatos (e mesmo assim esmaecidos), do que como os documentos que os seus autores pretendem que sejam. Algumas dessas obras são notáveis e marcantes. São fluentes, dinâmicas e gostosas de se ler. Têm o valor literário dos melhores romances. Mas têm muito pouco, ou mesmo nada, de documentos. Entre os vários memorialistas que li, destaco Pedro Nava, com o seu "Baú de Ossos". Mas não creio, a não ser através de diários, que seja possível resgatar uma vida somente através desse instrumento fragílimo chamado "memória".

A artista plástica Maria Lúcia Dahl acentuou bem essa dificuldade de resgate de fatos e circunstâncias, com precisão histórica, ao escrever: "O passado é como um filme preto e branco que a gente colore do jeito que quer". E não é assim mesmo? Quantas vezes, ao recordarmos acontecimentos perdidos no tempo, que nos marcaram por alguma razão (boa ou má), não misturamos épocas, não acrescentamos detalhes inexistentes, não colocamos protagonistas que na realidade não tomaram parte deles, etc.! E agimos assim de boa-fé, certos de não estarmos faltando com a verdade.

Recentemente, fiz uma prova a esse respeito. Tentei resgatar, utilizando apenas a memória, determinada circunstância da minha vida de apenas oito anos atrás. Coloquei em uma folha de papel tudo o que me lembrava dela. Ou seja, o fato em si, seus personagens, a época em que achava que tenha se verificado, enfim, todos os detalhes que acreditava me recordar e bem. Busquei agir como se estivesse fazendo uma reportagem, escrevendo com todo o rigor jornalístico para o qual fui treinado em anos de carreira.

Posteriormente, comparei esse texto, que acreditava rigoroso e preciso, com o que havia registrado em meu diário no dia exato da ocorrência do acontecimento que tentava resgatar. Que diferença! Nem parecia que se tratava do mesmo incidente. A memória errou, de cara, por três meses, ao situar a época em que se deu o referido episódio. Das pessoas que coloquei na cena, pelo menos cinco não estavam presentes, uma das quais por uma razão insuperável: havia morrido semanas antes. E olhem que sou considerado um sujeito com memória privilegiada! Imaginem se não fosse!.

Essa impossibilidade de precisão, contudo, não invalida o memorialismo, em especial quando quem o exercita é um sujeito criativo, que sabe extrair lições do que relata e é bastante comunicativo. Mas por causa da cor que damos ao filme preto e branco do passado, existem tantas biografias a respeito de uma mesma personalidade, umas conflitando com as outras, a ponto de parecer que seus autores se referem a pessoas distintas e jamais à mesma. É como diz o ditado popular: "Quem conta um conto, aumenta um ponto". Neste caso, o clichê é aplicável mais do que nunca.

É muito comum contemporâneos nossos descreverem, em idade madura, uma hipotética infância feliz, quando nós, que convivemos com esses indivíduos nessa ocasião, sabemos, por termos testemunhado, que essa fase não lhes foi tão cheia de alegria e de luz, mas sombria, repleta de abandono, desamor, agressões e amargura. Nós mesmos nos surpreendemos amiúde tentando nos enganar a esse respeito e, pior, convencidos de estarmos reproduzindo uma realidade. Ou seja, colorimos de rosa e azul esse filme preto e branco, que se alguma cor devesse ter, seria cinzenta ou marrom. Daí insistirmos e reiterarmos que a memória é um instrumento fragílimo e nada confiável para resgatar fatos.

Guilherme de Almeida tem um poema extraordinário, que aclara o que queremos dizer. Intitula-se "Tempo" e diz:

"Às vezes parece que faz um século.
às vezes parece que faz um minuto.
Eu devo andar tão perdido no tempo,
tão perdido dos outros,

tão perdido de mim mesmo,
que meu rosto no espelho olhou-se esta manhã,
e em vez de perguntar:`Onde é que você está?'
resolveu perguntar:`Quando é que você está?".

Se de um dia para outro, nossa memória faz tamanha confusão de dados, o que dizer de um mês para outro, de um ano para outro, de uma década para outra, de uma vida para outra?


* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos), “Cronos & Narciso” (crônicas), “Antologia” – maio de 1991 a maio de 1996. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 49 (edição comemorativa do 40º aniversário), página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio de 2001. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 53, página 54. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk

Um comentário:

  1. Segundo consta a história de Cristo foi escrita 179 anos depois da morte dele.

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