sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Um conto de sangue

* Por Rosane Magaly Martins


Ela descende de uma linhagem de mulheres às quais foi negado o direito ao prazer, ao orgasmo e ao amor. Não sabia disso e não se sabe se tal conhecimento teria mudado seu destino traçado quando nasceu. Tinha escrito na testa e no braço direito, assim que nasceu, duas sinas: a de pobre e pecadora. Pobre, porque nunca teria nada seu, nunca. Pecadora, porque seu caminho seria só, não solidário e na contramão das missas dominicais.


I POBRE


Eu lembro de sua mãe pedalando pelos morros da cidadela, pelas madrugadas que salvavam cristãos, para não perder os prêmios miseráveis ao final do mês. Sim! O prêmio era sempre algo que não serviria para ninguém mais, a não ser para aqueles miseráveis que tinham como karma, que acordar todos os dias às quatro da madrugada.

Ela colocava aquele vestido surrado, branco com pequenas flores coloridas estampadas, doado de alguma família menos pobre, que nem combinava com a sandália gasta e velha e pedalava. Pedalada seu tempo, suas ruas, cada pedrisco e buraco que se avizinhava. Nestes trajetos pela madrugada silenciosa, lhe viam alguns sonhos quase possíveis de serem realizados. Talvez encontrar um homem bom, bonito e que se possível, lhe gostasse e lhe tirasse da miséria onde foi nascida.

Veio-me agora uma cena de sua pequena avó paterna caminhando morro abaixo, antes de qualquer galo da vizinhança despertar, com um punhal escondido na bolsa, e se ia entre pés de carrapicho, de língua de vaca que cortavam suas pernas alvas e ainda quentes da cama. Ela tinha medo das maldades do mundo, dos homens que espreitavam moças ainda virgens que iam ao trabalho na separação de folhas de tabaco, antes do sol nascer.

A avozinha não tinha sonhos secretos, pois nunca havia dormido uma só noite completa que lhe possibilitasse isso. Não havia cinema, novela nem sonhos junguianos. Era acordar e trabalhar até que novamente o corpo fadigado por longas caminhadas e horas sucessivas cheirando fumo, com mãos grossas, pretas e sem carinho pudessem finalmente descansar.

Soube ainda que a outra avó, a mãe da mãe, não vinha de melhor estirpe. Desde os 14 anos tinha sido entregue a um homem que só fazia-lhe às vezes de uma fêmea para satisfazer sua lascívia, esconder seu sexo e agasalhar seus líquidos. Era um homem rude, que cuspia fumo mascado e levantava seu vestido quando lhe proviesse. Eram filhos e filhos saindo de si, sem que tivesse tempo de pensar, de fritar, de fugir ou de trocar seu vestido emprestado, roto, sujo e largo.

A mãe, pobrezinha, não sabia de cantigas, de carinhos em seus cabelos, de banhos em tinas quentes nem de bonecas. Tudo era feito a navalha, no frio e no rio. O banho diário, a roupa que deveria ser limpa semanalmente, a louça suja eram repassadas nas águas frias do rio da cidadela. Não olhava nos olhos de ninguém, pois poderiam descobrir seus segredos. Sim, pois ela era uma das poucas que ousara sonhar, já na adolescência e sob os olhares desejosos dos homens da cidade. Não entendeu bem o que nem o por que dos olhares, das obscenidades que ouvia quando passava com o vestido muito curto, os seios meios em riste, as cochas perfeitas pelos exercícios matinais de ir e vir do trabalho.

A avó paterna não podia mais com aquilo. Morava feito macaco, em luar íngreme, feio, frio e úmido. Seu filho mais velho havia tido o crânio amassado por um ônibus enquanto dava a ré, em frente da igreja.  O filho mais novo, desde então, nunca mais riu nem falou. Ele lembrava da massa encefálica do irmão escorrendo pelo meio fio, dos gritos desesperados das vizinhas e do motorista que não havia visto os meninos na bicicleta. O filho mais novo da avó paterna esqueceu o que era sonho e as noites longas, eram banhadas de choros, lamentos e carpideiras do velório do irmão.

Quem disse que sofrimento salva? Quem disse que Deus ajuda quem cedo madruga? A bordadeira deixou o pano de enfeitar cozinha pronto, em ponto cruz azul, sobre a mesa. No outro dia a vizinha viria apanhar, para dar à amiga que iria casar sábado ao final da tarde. Soube que ela tinha conseguido um bom homem, um bom homem para casar. Quem lhe apresentou foi a irmã, que trabalhava num prostíbulo por dinheiro e por prazer. A irmã disse: “com esse você vai casar. É homem direito”.

A avó materna chorava. Não queria mais tanto filho, nem ser trepada todas as noites pelo marido cachaceiro, arruaceiro. Não tinha mais forças para dizer nem que sim, nem que não. Nem a reza lhe salvaria, pois não há lugar no céu pra tanto filho. Ela limpava o gozo do marido com aquele paninho que a filha trouxera da malharia. Até quando ela teria que suportar tudo aquilo? As brigas dos filhos, aquele que fugia para mendigar, o outro para roubar e a mais velha, para transar com qualquer um.

A falta do futuro como esperança, a desgraça do passado como lembrança.

Lembro de sua mãe, chorando na morte do marido tão bom, tão escolhido a dedo pela irmã prostituta. Os bons morrem antes e é deles o reino dos céus. Ela havia ficado para purgar seus pecados. Os pecados de sua carne trêmula, fraca, epiderme e derme intumescida pelo prazer de ser vista não só como uma bicicleta.

A avó paterna, melhor sorte não teve. Dizem até que rezou muito pela sua morte. Mas os bons morrem antes. O marido se foi e a deixou sem nada, com a miséria nas mãos, contrato de aluguel vencido, filhos doentes. Não poderia ter sido diferente. Seria dela o reino dos céus? Por sofrer tanto e nunca ter conhecido o prazer haveria de ter recebido como dádiva das novenas dos últimos dias, um lugar assegurado, lá, bem lá no céu.

A outra avó, que enrolava fumo, continuava na safra. Mas acreditava que haveria salvação. Quando ele morreu de cirrose e ela pode dormir uma noite inteira com os dois olhos cerrados, respirou aliviada. O filho calado partiu, criou família. Ela não teria mais com o que se preocupar a não ser com a manutenção das sepulturas, para assegurar que dali não sairiam: o filho mais velho com crânio partido e esperanças vãs e o marido morto por cirrose, maus-tratos e pelo sofrimento que infligiu ás mulheres estupradas pelo seu caminho.

A cidadela permanece impávida.

O rio já não lava as partes das moças, nem as louças nem as roupas da pobreza.



II PECADORA


Ela descende de uma linhagem de mulheres às quais foi negado o direito ao prazer, ao orgasmo e ao amor. Tinha escrito na testa e no braço direito, assim que nasceu, duas sinas: a de pobre e pecadora.

Dizem que a mãe era uma puta, que dava para qualquer um que lhe prometesse que teria prazer, que era poderosa, bonita, fogosa. Havia cansado da solidão, das noites sem beleza, sem calor, sem tesão. Soube pela boca das amigas que ela era uma mulher avassaladora. Onde passava com seus vestidos bem cortados, com seu soutien alinhado e o perfume do catálogo comprado em duas parcelas, fazia com que os homens enlouquecessem. Não sabiam as outras mulheres se era seu cheiro, se era o balanço de suas cadeiras, se era o sorriso no canto esquerdo da boca, ou o olhar atrevido diretamente nos olhos de sua presa.

A avó paterna não cometeu pecados. Tinham um desejo sórdido pelo padre da paróquia. Imaginava-se por vezes levantando sua batina e recebendo as bênçãos celestiais depois de subir em seu ventre e incessantemente fartar-se dele. O segundo marido, um santo, pouco pode fazer pela mulher viúva que não mais descia o morro com o canivete na bolsa. Ele queria rezar, levá-la à quermesse, à festa dos amigos e dizer para todos que não era gay, nem anormal por estar com 40 anos e ser virgem. Fora ela, aquela mulher fogosa que lhe despertou os pecados. Passava por ele, diariamente, com as cochas quentes, com as faces rubras, com o vestido curto, com o salto médio de seu sapato envernizado. Devorava-o com os olhos e até com os cheiros que fabricava com suas flores de jardim.

A outra avó desistiu de querer outro homem. Houve até dias em que queria ter nascido homem, pois não via vantagem alguma em ser assim, uma mulher, parideira. Já não usava calcinhas, para que os outros filhos não a vissem sempre no chão, jogada. Sempre que ele trepava nela, percebia os olhos do pecado lhe espiando pelas frestas do sótão. Que olhos eram aqueles? Que risos eram aqueles que lhe impediam a entrega e o prazer?

O prazer não era o da carne crua, do banho nu, do rio gélido que limpava as partes pudendas e calorosas. O prazer não era mais do coito, das vogais que escapavam da boca enquanto estavam ali entregues um ao outro. O prazer não habitava mais a cama nupcial que já havia experimentado outros momentos. O prazer haveria de ser o que não teriam nunca aquelas mulheres pecaminosas, perdidas em um passado de trevas e devassidão.

O pecado estava tatuado nelas e a santíssima trindade havia proferido a sentença: culpadas pelo prazer e haveriam de levar o fardo da frigidez, do coito interrompido, do sexo sem amor, do prazer unilateral.

Eram descendentes das bruxas, das mulheres que habitavam as florestas e dançavam nuas sob o luar. Das mulheres livres e puras. Das mulheres élficas. Das mulheres que haviam libertas sob as asas.

Eram as sucessoras da inquisição, das que morreram sob malleus maleficarum. Eram as bruxas do norte da Alemanha que nunca abdicaram dos demônios em nome da cristandade.

A mãe, a avó paterna e a outra haveriam de possuir poderes sobrenaturais das bruxas. O demônio fez com que as coisas corressem de tal forma mal na vida destas mulheres, que eram levadas a consultar outras bruxas. Ao fazê-lo, passavam a seduzir os homens ou com as delicias do sexo, ou com o fascínio dos poderes das trevas. E voltavam a dançar nuas...

Na cidadela, ainda hoje as outras mulheres rezam na diocese para que possam um dia encontrar um homem bom, uma noite inteira de sono, de coitos e outras possibilidades.

Enquanto isso, as outras ardem nas fogueiras!!!



* Advogada, escritora, tutora e professora IFSC e Fiocruz.

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