sábado, 26 de dezembro de 2015

O primeiro – Parte I



* Por Edmundo Pacheco




Terça-feira, 22 de Julho, 2017, indicava o velho calendário de papel, pendurado na parede do que antes deveria ter sido um apartamento, uma habitação humana. Numa das paredes, uma velha foto desbotada de algo que teria sido um belo cavalo, encimada pela propaganda de um supermercado, ao lado de um esqueleto branco, do que fora uma criança, de uns 10 anos. Eram estas as poucas evidências da vida que habitara aquele lugar fantasmagórico. Erickson jamais se acostumaria com estas cenas.
 
Empurrou a velha porta de madeira apodrecida e pedaços de concreto e aço, que obstruíam a passagem, caíram escada abaixo. Um rato, avermelhado e gordo, correu do monte de entulho e entrou numa fresta da parede. Eric olhou-o, e continuou a subir.

Lá fora, as eternas nuvens negras cobrindo o céu, noutros tempos, indicariam chuva. Hoje, ao contrário, era dia claro. “Poder-se-ia sair para ir à feira”, pensou, Eric, sorrindo. A repentina imagem da feira, o cheiro das frutas, da barraca de pastel, das pessoas carregando sacolas, escolhendo algo por comprar. E o vento marinho, gelado, fê-lo sentir-se vivo. Ironicamente vivo.

Chegou ofegante ao telhado. Olhando de cima do velho prédio semi-destruído, a visão que se tinha do antigo Rio de Janeiro era arrepiante. A ex-cidade maravilhosa era hoje um amontoado de nada.

Ao fundo, um braço enfiado no morro, outro quase submerso nas águas da praia de Botafogo, o velho Cristo Redentor, marca registrada da cidade maravilhosa, era uma figura patética.

Prédios, casas, favelas, quase nada restara da antiga civilização. Nem Eric deveria ter restado. Mas restou. E se restou, deveria ter uma razão, um propósito. Era isso que pensava. Era isso que o impulsionava. Não fosse por esta certeza, há muito já teria desistido. Morrer teria sido um prêmio a que ele não tivera direito. Eric restara. Sobrevivera.

Era possível, apesar de pouco provável, que em alguma parte do velho e abandonado planeta uma outra pessoa também tivesse restado, sobrevivido. E se existisse tal pessoa, Eric gostaria de encontrá-la. Gostava de pensar na possibilidade de que tal pessoa fosse uma mulher. Seria sua Eva. Poderiam iniciar uma nova civilização. Reiniciar.

Que mais poderia desejar ele? Se bem que estivesse velho demais para pensar em sexo. Ou melhor, deveria estar velho demais, mas não estava. De alguma forma, o tempo parara para ele. Nos últimos cem anos, pouco mudara... Apenas os pêlos, que antes eram ralos e curtos, agora estavam longos, espessos e cobriam todo seu corpo. Quando o fim chegou, Eric não fora perguntado se queria sobreviver. Teria respondido: NÃO!!, claro. Com todas as forças: Nãooo!!.  Não. Ele simplesmente sobrevivera. Eric era o último. O último da espécie humana...

Na época, tinha 17 anos e morava num pequeno vilarejo do interior do Paraná, próximo de Maringá. Pouco menos de 100 habitantes, a maioria moradores da zona rural. Apenas uns poucos, não mais que meia dúzia, habitavam o lugarejo ermo. Eram os donos do mercadinho, da máquina de arroz e outras casas comerciais. Eric crescera ali. Sem amigos, sem grandes aventuras. Apenas os trens iam e vinha com o vento, sem acrescentar nada à vida.

Havia apenas um velho telefone, daqueles negros, pesados, que funcionava quando queria (e queria só quando não era necessário) e um único aparelho de televisão em toda a vila (claro, na casa da chata da dona Genoveva).

O fim chegou, primeiro pelo velho rádio da sala, que o pai ouvia religiosamente, desde a revolução de 64. Numa manhã friorenta o aparelho simplesmente não falou mais. Apenas chiava. Naqueles dias, o céu escurecera misteriosamente. E aos poucos, adoeceram e morreram todos. Um após o outro.

Os primeiros eram enterrados pelos restantes, no velho cemitério atrás da igreja. Eric tinha medo que se levantassem. Passava as noites em vigília. Seu pai foi um dos últimos. Tossiu muito uma tarde. Escarrou sangue. Sem forças, caiu. Eric e sua mãe ainda tentaram tirá-lo de casa. No vilarejo não havia mais ninguém com forças suficientes para ajudar. Dois dias depois, quando a casa já fedia, a mãe de Eric também não amanheceu.


CONTINUA

*Jornalista, ex-editor-chefe da TV Guairaca (afiliada Globo) Guarapuava, PR

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