domingo, 27 de dezembro de 2015

Estrelas perfumam o firmamento de Irina



* Por Eduardo Murta



Vendo a pequena assim, a um braço de ser tocada, os contrastes competem em arrebatamento: o vermelho-tourada, das maçãs do amor, e o verde-estação-chuvosa dos olhos. Chamava-se Irina. Não teria mais que oito anos. E a vozinha entre rouca e cândida oferecendo frutas e fazendo sonhar – a quem comprava, porque artigo nobre em arquibancadas de circo, e a ela mesma, porque Vô Amâncio prometia o mundo se retornasse com o tabuleiro vazio. Nada menos que uma conta de estrelas do firmamento.

As Três Marias, o conjunto em forma de Escorpião e o Cruzeiro do Sul, assim, haviam se transformado em bibelôs da princesinha do vilarejo. E, por mera casualidade, entraria eu naquele emaranhado de sonhos. Jogava bolinha de gude no entorno da praça, quando ouvi o chamado. Jeito de quem invocava um favor, o velhinho combinou assobio discreto com um aceno de mão velado.

Fui. Encarei os lábios derivando de uma rede densa de vincos. Tremiam sob as rugas. Ficaram naquele movimento de hesitação, até balbuciarem a primeira palavra. Perguntou apenas se eu responderia que sim. Fiz sinal afirmativo. Logo exibiu o que o inspirava: apontou a netinha cruzando a terra batida em direção ao armazém, em silhueta ao jacarandá mimoso. Tempo de floradas. Tinha pernas magrinhas, ares de gazela mansa.

Expôs o plano. Me queria zelando pela menina, eu, menino também, mal chegado aos 11 anos. Daria até ofício, ele mesmo provendo. Acertou contrato com a matrona circense. E, domingo seguinte, o palhaço-assistente fazia sua estréia. Em papel de aluguel, roupas tom de arco-íris, correndo seu norte pelo chão nu do lugar. Trombando em elefantes, tropeçando em cordas. A mirada, porém, sem despregar de Irina.
O avô temia, sobressaltos da época, que fosse tomada por ciganos ou gente forasteira. Seus olhos ecoavam fama. Pintores do Baixo Guandu já haviam rompido rio acima por dois dias, o remo desenhando caminho, a que a retratassem. Retrocederiam, sem permissão. E a saca de dinheiro de coronel Matoso, então, a família lera como heresia-mor. Sequer permitiu que colocasse os pés na sala, despachado antes mesmo de vencer o portão.

Por tudo isso, a vigilância ganhou corpo e intensidade. Primo Zezinho, peixeiras lustradas, e Sô Lima, polícia reformado, mortes no currículo, passaram a integrar a guarda. Eu me afeiçoando às macaquices de picadeiro sem jamais perder a protegida de vista. E, noutra ponta, a candura de Irina ditando os feitiços sutis de encantamento. Os pezinhos emoldurados nas sandalhinhas de couro baixas e aquele ar de Monalisa do sertão. A história ligeiramente moldando um refém que não mais ela.

As 18 unidades vendidas, voltaria para casa naquela noite com sabor de festa na boca. O coração miúdo alimentando o desejo do presente prometido. Foi variando e, ao jardim, um sentimento de solidão leve lhe varreu. Estranhou. Tocou a maçaneta e veio o pressentimento trágico. Silêncio de capela, meia-luz. Revés, coisa de inferno o que viu lá dentro. Desgarrou rua afora gritando mataram, mataram, mataram... Foi comigo que topou primeiro. Vestes de palhaço ainda. Nem maquiagem desfeita. Se agarrou como num abraço de afogado.

Enlaçou-se em mim, que as cores difusas foram lhe tomando a face. O choro quente desbotando os tons. Até que adormecesse. E estava eu ali, menino, invocando alguém que iluminasse meu destino. Amparando uma Irina que, num ponto qualquer, transformara por definitivo minha vida. A ela restavam destroços e eu, sem desejar, mas querendo, era parte essencial do que lhe sobrara. Perdido também, mas convertido em vaga promessa de conta de estrelas. Guia. Pingo de luz no firmamento.


* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa e “Minhas condolências à senhora Vera”, lançado em dezembro de 2010, com 50 contos. Publicou, também, em parceria, o livro “Galo – uma paixão centenária”. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. Foi um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.



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