quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

A praça fala ao seu povo

* Por Marcelo Sguassábia


Eu, a praça de Buritis da Serra, vi quase tudo acontecer em meus domínios. Comecei com um círculo malfeito de terra batida, quando não eram nascidos os avós dos vovôs de hoje. Nem chafariz tinha, nem planta, nem nada. Vocês foram me formando, dando sentido a mim e me tornando, feia ou bela, o seu cartão postal. Gerações se sucederam me elegendo como palco principal de seus encontros.

Na minha época áurea, os saguis zanzavam pelas paineiras. À sombra delas, o assunto era um tal de Getúlio. Que Getúlio isso, que Getúlio aquilo, alguns defendendo e outros odiando. Falavam muito dele nos comícios.

O fato é que já tive mais prestígio e glamour. Fui o epicentro da pólis e a agência de notícias de antanho, e é difícil para mim amargar esse abandono a que me relegaram. Era a sede de um poder paralelo, mais efetivo e influente que qualquer ato do executivo ou conchavo da vereança. A praça era a verdadeira tribuna do povo, o estopim de greves, passeatas, atos de desagravo. Agora, quando muito, sirvo de ponto de referência para que alguém saiba onde fica um outro lugar qualquer.

Praça também é gente. E verdade seja dita: ninguém é mais cidadã nessa cidade do que esta praça que vos fala. Posso até não ser de carne e osso, mas assisti a todos os pecados da carne acontecendo nos meus bancos e tenho embaixo do meu chão os ossos de gente ilustre. Há também engrenagens enferrujadas de moenda de cana, um vidro de leite de magnésia, um livro-caixa da fazenda Campo Largo, cacos de porcelana da Companhia das Índias e um disco 78 rotações da Chiquinha Gonzaga. Isso além de centenas de dedais, rolos de esparadrapo, rodas de carrinhos de brinquedo, chaves e cadeados de diversos feitios e tamanhos, cordas de sisal, arreios de couro e outros artefatos que prefiro não citar, para não ferir a moral e os bons costumes desta terra sem heróis.

À meia-noite e ao meio dia, sou duas praças diferentes. E não sei qual é a pior.

Com o sol a pino, e ainda assim de vez em quando, assisto ao trote vagaroso de uma mula que já não se aguenta, arrastando a sucata para o ferro-velho, como se há séculos conhecesse o caminho. Nessa hora, de fresco aqui só a água benta da igreja. Estudantes matam aula, velhotes matam o tempo, casais matam a saudade, bêbados matam a sede de cachaça e, caídos sobre minhas pedras portuguesas, ofuscam com o odor de suas entranhas os meus poucos jasmins.

Já à noite, ir à praça dá medo. Um sujeito aqui, depois das oito, é suspeito. E onde até outro dia haviam retretas e crianças felizes em seus velocípedes, há um breu cúmplice do tráfico e da contravenção, mesmo contra a minha vontade.

Se a praça fosse qualquer um de vocês, bípedes autodenominados pensantes, aí sim veriam o que é bom. Não iam gostar nada do mato crescendo, das folhas caídas, dos papéis jogados e ninguém cuidando.

Quando haveria de pensar que sentiria nostalgia da pouca vergonha de que fui testemunha... Quanta gente eu vi sendo concebida aqui nas minhas barbas (ou nas minhas moitas), e depois batizada ali na Matriz, fazendo a primeira comunhão, namorando em volta do meu coreto, casando, envelhecendo e finalmente fazendo, por meus caminhos, seu último passeio rumo ao campo santo.

Quero meu direito de ser praça novamente. Mas Praça digna, com P maiúsculo. Até nome de edifício de apartamentos agora é praça, plaza, piazza, onde já se viu? Banalizaram demais esse nobre logradouro. Não, pra mim chega. Ser praça assim não tem graça.

* Marcelo Sguassábia é redator publicitário. Blogs: WWW.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) e WWW.letraeme.blogspot.com (portfólio).



Um comentário:

  1. Confissões de uma praça de nome pomposo, mas sem dono. Que alguma alma boa aproveite o espírito de Natal e a acolha em seu seio, adotando-a.

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