terça-feira, 20 de outubro de 2015

Nuvens na escuridão


* Por Juarez José Viaro


4:15. Acorda e olha os números vermelhos do rádio-relógio, brilhando na escuridão do quarto. “Cedo demais”, pensa. Vira-se para o outro lado onde não veja aqueles números incandescentes de sua insônia. O corpo parece pesar, preso a uma corrente no pé da cama. Lembra-se da orientação de alguém de não se dormir sobre o lado esquerdo do coração. Revira-se. Pensa em algo para voltar a dormir. Lembra-se do mantra quando fazia meditação. Mas não podia dormir ao repetir aquelas palavras desconhecidas, talvez em sânscrito. E sim atingir o ponto alfa. Precisava pensar noutra estratégia. Talvez contar de trás pra frente. 10, 9, 8... Melhor esquecer. Quem sabe contar carneirinhos? Mas nunca havia contado carneiros quando criança, só tinha visto isso em contos infantis traduzidos.

4:22. Os números pareciam saltar aos olhos sonolentos. Quem teria inventado esses traços como bisnagas de pão que formavam todos os números? Lembrou-se do enorme relógio digital na Avenida Paulista. O farol moderno dos transeuntes, as horas de trabalho contadas minuto a minuto. Precisava relaxar. Repetir as três palavras mágicas: relaxar, descansar, dormir. Relaxar, descansar, dormir. A cabeça, porém, girava a mil, a hora em que todos os problemas do dia seguinte pareciam insolúveis. Lembrou-se do conselho do analista: “se não consegue dormir, aproveite o tempo para fazer algo útil”. Levantava-se então, ia para o computador, entrava na Internet e ficava até a hora de acordar. Talvez tenha sido essa a razão do fim do casamento. Ou uma delas.

4.33. Se pelo menos tivesse alguém ao lado para fazer sexo. Mas estava só. Só com sua insônia. Uma palavra dentro da outra, espelho refletindo espelho. Como no slogan: I like Ike. Uma coisa dentro da outra. Como na infância, ao lado da mãe que fazia um bolo e vendo a latinha de fermento em pó. A embalagem com o desenho de outra lata de fermento, com a embalagem de outra latinha, até o infinito. Uma lata dentro de outra. Como as latas de mantimento guardadas no armário, uma menor que a outra, uma dentro da outra. Precisava dormir. Girou para o outro lado de novo, o corpo pesava, com os grilhões nos pés, os rangidos da cama. O vizinho do apartamento de cima, que escutava ranger a cama e gemer, talvez fazendo sexo com a esposa. O abrir e fechar de janela do quarto de outro vizinho, talvez solidário na insônia.

Levantou-se e foi ao banheiro. Lembrou-se de Duchamp e seu urinol. A arte ironizando a vida. Ouvia também o ruído do vizinho de cima ao mijar, ao apertar a descarga, ao ligar o chuveiro, a vida em apartamentos, sem intimidade. Aproveitou para fechar a porta, para não ver o dia nascer, refletido na parede do corredor. Voltou a deitar-se, girou o rádio-relógio para não ver aqueles números angustiantes e vermelhos. Todos os problemas a resolver no dia que já teimava em começar cedo. Tomar o banho, vestir-se, tomar o café, pegar o carro e enfrentar aqueles cúmplices sonolentos no trânsito. Chegar ao trabalho, deparar-se com os mesmos rostos conhecidos, mas nada familiares. Bom-dia com cheiro de café tomado às pressas. Cheiro de produtos de limpeza no escritório. As mesmas coisas nos mesmos lugares.

As horas, as horas. Que fazer com as horas que passam e não deixam dormir. Com os números vermelhos que alertam que o dia está chegando e é preciso levantar-se da cama. A cama e o banheiro, o trajeto de sua insônia. Tentou não pensar em nada, apenas fechar os olhos e “ver” aqueles fios luminosos da retina boiando no escuro. Tentar não pensar, suprema conquista dos iogues. Não pensar, deixar as imagens fluírem, sem pensar. Em vão. O dia já teimava em nascer, via a luz penetrando já pelas frestas da esquadria de alumínio da janela. Ouvia pássaros, quais seriam? Talvez o mesmo bando de maritacas que passavam com seu ruído estridente, vindos do Parque do Ibirapuera, ou fugindo de algum ruído de trânsito.

5:11. Aos poucos já podia ouvir barulhos de carros. O vizinho que madrugava, retirando o carro da vaga da garagem. Sempre no mesmo horário. Algumas derrapagens de carros apressados, talvez voltando de noitadas. Ainda podia dormir mais, teria que repor as energias gastas no dia anterior. Calculava as horas que ainda restavam para adormecer. Lembrou-se da terapia. O analista associando a hora de chegada do pai de madrugada, quando era criança, com o horário que batia a insônia, de adulto. O pai chegando de madrugada, com seu cheiro de cigarro infestando o quarto comum. A psicanálise como um tipo de literatura.

Virou-se pela enésima vez. O corpo cansado, o lençol amarrotado, o travesseiro virado mais uma vez. O som dos pardais, talvez milhares deles. Lembrou-se da definição ouvida ou lida. Os pardais, trazidos pelos portugueses, pássaros inúteis, sem plumagem bela, sem canto harmonioso, apenas cagando e matando outros pássaros que invadiam seu território.

Quem teria dito isso? Precisava ser mais esquemático, anotar coisas importantes, citações, para ocasiões sociais, sempre havia utilidade quando faltava assunto. Dizer uma máxima, um pensamento de alguém famoso era útil para começar assunto, mostrar conhecimento, superioridades. Balela, precisava aprender a dormir. Resolveu tentar mais uma vez, os números vermelhos se aproximando do limite de tempo permitido. Concentrou-se, deixou fluir os pensamentos, relaxou. Uma nuvem de sonolência parecia passar por aquela noite escura. Nuvens na escuridão. Adormeceu.

6:00. O despertador despertou, determinando o fim da noite.


(*) Juarez José Viaro é formado em Letras e Jornalismo. Publicou o livro de poemas “Aroma de Amora” e participou de movimentos literários em Osasco e São Paulo. Tem um romance inédito, “Viagem ao Interior”.

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