domingo, 20 de setembro de 2015

Sobre comida e saúde



* Por André Falavigna



Outro dia, aqui no Literário, numa crônica sobre como devemos proceder para identificar, isolar e destruir frescuras, eu disse duas ou três coisinhas sobre a visão que as pessoas têm a respeito da comida que comem. Naquela ocasião, eu escrevi que “Outro bom meio de identificar um fresco é sua alimentação. Todo homem que não compreende que o ato de comer é pura diversão e que não tem nada a ver com a saúde é, além de um fresco, um nazista e um filha de uma puta”.

É hora de desdobrar o argumento e aprofundar a tese.

Vejam só: não utilizei o termo “todo homem” à toa. Essa é uma manifestação de frescura típica de homem mesmo. Mulheres se preocupam com essas asneiras por motivos que muito menos têm a ver com frescura do que têm a ver com neuroses. Se há uma coisa que o feminismo poderia ao menos tentar pelas mulheres é livrá-las da pressão pelo enquadramento do corpo. Hoje se diz muito que “a busca do corpo perfeito” é uma paranóia de nosso tempo. Trata-se de um erro terminológico grave. Corpo perfeito o escambau. O que se busca é atender a um protocolo de uniformização da beleza cujos padrões são muito, muito estranhos. O próprio intento de uniformizar é medonho. Que a partir de qualquer modelo baseado nele não se obtenha garantia nenhuma de beleza, isso decorre da inaplicabilidade dos próprios conceitos de homogeneidade e de garantia na beleza física; que tanto se insista nisso, a ponto de já tanta gente nem notar o absurdo, isso já fede a enxofre. Mulheres sofrem porque acham que precisam ser magras a todo custo e porque, convenhamos, a natureza lhes é ingrata: conte quantas mulheres com mais de cinqüenta anos ainda povoam o imaginário dos homens que você conhece, depois lembre-se de Mel Gibson, de Richard Gere e de mim, daqui a vinte anos.

 Com homens tudo muda de figura. O sujeito que tem ostensiva preocupação com a própria aparência é um convertido da pior espécie, porque assume para si exigências que já são indevidas quando lançadas contra mulheres. Criatura repulsiva, que como homem não estaria diretamente sob a artilharia midiática acerca do corpo “gostoso”, mas que acha lindo correr para debaixo dela ansioso e sapeca. Ninguém espera que os homens sejam porcos, não tomem banho, andem maltrapilhos ou tenham bafo. Daí a perder horas na frente do espelho ou escolhendo uma roupa, possuir uma sapateira com vinte pares ou fazer depilação definitiva, a coisa vai bem longe. O camarada que exige isso de mulheres é meio tonto. O que exige isso de si, lá no Cambuci tem outro nome.

Mas esse tipo ainda não é aquele ao qual eu me referia na outra crônica. Esse cai no ridículo muito facilmente e pode muito facilmente ser identificado. O espécime perigoso é aquele que lê as reportagens sobre saúde que de tempos em tempos a Veja põe na capa e, depois, modifica o cardápio da família toda. Diante de um desses, todo cuidado é pouco.

Uma vez, há uns cinco anos, fui almoçar com o diretor financeiro de uma empresa na qual eu trabalhava. Como todo babaca perfeito, ele me fez ir a um self-service. Comida por quilo é coisa para animais. Raramente presta. Quando presta, presta menos do que qualquer comida a là carte que custe a mesma coisa. O pior é o argumento da higiene. Quem sabe como funciona um restaurante conhece o Lavoisier que existe dentro de cada dono de Kiloucura.

Pois muito bem: enchi meu prato de ovos de codorna (e de outras guloseimas, óbvio). Não sei se a lenda a respeito dos ovos de codorna corresponde à verdade. O que sei é que ovo é sempre muito bom. Assim que sentei à mesa, o chefinho manifestou espantinho: “Nofa, quanto ovo de codorna”. Respondi que ovos de codorna são uma delícia. Ele me respondeu que concordava. Eu lhe perguntei por que não os comia, então. Ele me disse que ovos possuíam muito colesterol. Colesterol faz mal, entope as veias, forma placas, faz o diabo com o coração do sujeito que tem muito colesterol. Por isso, devemos evitar ovos. Compreendo.

Acontece que, se é mesmo verdade que ingerir ovos pode nos fazer mal, não sei se evitar ovos pode nos fazer bem. Só para ficar no exemplo do ovo. E digo “se é mesmo” porque já vi exemplos demais de burros n’água por conta da fé cega na medicina. A medicina é mesmo uma ciência. Deveríamos, portanto, tratá-la como tal, e não como uma Revelação mística. Médicos são cientistas, não profetas. Profetas não erram, ou são falsos profetas. Já cientistas podem errar o quanto for: é só assim que eles conseguem acertar alguma coisa. Médicos que não erram são falsos cientistas, e duplamente falsos; primeiro porque se fazem passar por profetas, coisa que não são, depois porque, ao se passarem pelo que não são, deixam de ser o que realmente eram: cientistas.

E cozinheiros são artistas. Não devem satisfação nenhuma à saúde, a não ser na medida da saúde que passa pela higiene. E olhe lá.

Sejam sinceros. O que pode fazer mais mal a um indivíduo, a uma família, à sociedade e à civilização: um belo bife com dois dedos de altura, mal passado, gordo e sagaz, ou uma ideologia paranóica que pretenda que vivamos todos para sempre, desde que vivamos mal? Não sei se a conta é possível, não deve ser, mas finjamos que sim; finjamos que a ciência de hoje possa nos garantir que cada fritada de camarão pistola no alho que viermos a comer resultará em dez ou quinze segundos de vida a menos, lá na frente.  Diante de uma informação dessas, aquele meu diretor financeiro deixaria de comer fritadas de camarão pistola no alho. Ele e uma parcela cada vez maior de nossas classes “esclarecidas”. Se, daqui a vinte anos, o Fantástico disser que a ciência daquele tempo diz que as fritadas de camarão pistola no alho são excelentes para o trato intestinal e que a privação delas pode causar paralisia retal generalizada, essa gente toda vai nos incomodar uma barbaridade. Para completar, terão deixado de aproveitar umas cinqüenta fritadas, estarão azedos e terão sido chatos por duas décadas, durante as quais eu fui ficando cada vez mais charmoso e Mel Gibson foi envelhecendo com cada vez mais dignidade.

Comida sem gordura é moralmente reprovável. Comida sem sal é um risco tão grande à condição humana quanto o são as possibilidades de guerra nuclear, de pandemias viróticas e de reprodução assexuada dos intelectuais de esquerda. A onda contra a carne vermelha, sobretudo a mal passada, torna a degradação da camada de ozônio um assunto de nefelibatas e irresponsáveis. Chocolate é uma invenção genial, conservas são uma dádiva, embutidos uma missão de vida. Se uma pessoa não consegue apreciar panceta defumada, ela precisa de suporte psicológico e medicação severa.

Essas coisas todas não têm nada a ver com gosto, têm a ver com educação. Se alguém não gosta de Mozart, é porque não entende música, porque não foi educado. Se não consegue ler Machado, é porque não o ensinaram a ler e isso é ruim, e se não entende que isso é ruim é porque é burro mesmo. Uma pessoa assim precisa de ajuda, não de cafuné. Eu não tenho que respeitar o gosto de ninguém, tenho apenas que respeitar o direito de alguém de ter o gosto que bem entender, por pior que seja a mania. Mas tenho, ainda, a obrigação de dizer: se você pede para passarem sua picanha, você simplesmente não foi ensinado a comer picanha, é um ignorante, e esconder-se atrás de confusas hipóteses médicas não o fará menos ignorante; apenas o tornará um ignorante covarde e teimoso.

Saladas são uma coisa fantástica, um universo quase infinito de possibilidades. Peixes também. Frango pode ser excelente. Mas, se você escolher comer salada, peixe ou frango pensando em saúde, e não em prazer, comerá saladas insossas, peixes inexpressivos e peitinhos de frango à moda do bobo. Mentir a respeito disso, dizendo que seu peito de frango sem sal acompanhado de alface americana sem azeite está uma delícia, enquanto torce o nariz para a rabada de seu vizinho de mesa, não conferirá sabor ao frango ou retirará sabor da rabada. O único efeito obtido com essa atitude é que ninguém acreditará em mais nada do que você disser e, quando o estuprarem e você gritar por socorro, vão pensar que é outro trote seu e não o socorrerão.

Nós só copiamos os EUA no que eles têm de ruim. Importamos práticas politicamente corretas, estamos tentando importar o racismo e já absorvemos completamente a visão utilitária das refeições, a hipocondria e o messianismo científico. Eu não tenho muito a dizer sobre os outros itens, inclusive porque há muito mais gente dizendo o que eu gostaria de dizer, e de maneira muito melhor do que aquela de que eu seria capaz. Sobre esse ataque ao prazer na mesa, entretanto, eu acabo de deixar minha modesta contribuição.

Foi tudo muito trabalhoso. Fiquei com fome. Fiquei com sede. O Empório A&M me aguarda. Cerveja gelada me aguarda. Salame fatiado também. Azeitonas e tremoços. Ontem, fiz um lombo de porco, gordo, que hoje também me aguarda, em casa, onde a pimenta deve lhe ter conferido propriedades transcendentais. Com agrião nadando no azeite, vai ficar uma loucura. Tudo isso me impede de prosseguir. Acho que vocês agora me entendem. Até a semana.

(*) André Falavigna é escritor, tendo publicado dezenas de contos e crônicas (sobretudo futebolísticas) na Web. Possui um blog pessoal no qual lança, periodicamente, capítulos de um romance. Colabora com diversas  publicações eletrônicas.

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