domingo, 27 de setembro de 2015

Remissão da pena



O romance “Remissão da pena” é o terceiro dos três livros de Patrick Modiano cujos direitos autorais a Editora Record adquiriu, no ano passado, na Feira do Livro de Frankfurt, após o autor ser premiado com o Nobel de Literatura de 2014 e que lançou no Brasil no início de 2015. Foi publicado, originalmente, na França, em 1988. Completa a chamada “trilogia essencial” do escritor. Trata-se de um volume pequeno, de apenas 128 páginas, como, aliás, é a maioria dos seus livros.

Caracterizar “Remissão da pena” é um desafio,  como, aliás, é toda a obra de Modiano. É um romance? Talvez, sim, mas não da forma convencional. É uma autobiografia? Até certo ponto, é, pois o autor trata de um período específico da sua vida, o de uma fase da sua infância, quando tinha apenas dez anos de idade. Todavia, como fez em outras publicações, o escritor mistura fatos reais com ficção, criando uma espécie de gênero próprio, e híbrido. A caracterização mais apropriada, porém, é que se trata de outro livro de memórias, mesmo que eivadas de fantasias.

O autor relata, sobretudo, lembranças de “Patoche” (apelido carinhoso de Patrick, ou seja, dele próprio) e o tempo em que, junto com seu irmão mais novo, viveu entre pessoas das quais conseguia vislumbrar apenas nuances ingênuas, características do olhar de uma criança. O escritor foi, praticamente, criado por terceiros, longe, portanto, de seus pais, por razões que parece nunca ter entendido. Patrick Modiano nasceu em Boulogne-Billancourt, subúrbio de Paris. Teve, reitero, pouco convívio com os pais. A mãe era uma atriz belga, em constantes turnês, nas quais, por motivos compreensíveis, não podia carregar as crianças. O pai, por seu turno, era um comerciante judeu, especializado em negócios, digamos, não propriamente lícitos (para não dizer, escusos) e que vivia se esgueirando para não ter que se haver com as autoridades (primeiro com a Gestapo e, posteriormente, com a polícia francesa).

Dessa forma, o escritor, e seu irmão mais novo, foram criados, por certo tempo, pelos avós maternos. Quando atingiu idade escolar, Patrick foi parar num internato, portanto, também longe dos pais. “Remissão da pena” é o relato de um período em que ele e o irmão foram deixados aos cuidados de três amigas da família, em um vilarejo dos arredores de Paris. Enquanto esperava que os pais viessem buscá-lo, o menino buscava entender a rotina provinciana a que era submetido e, sobretudo, tentava se adaptar a ela. Como toda criança, brincava, sonhava, fazia lições escolares e empreendia incursões clandestinas a um castelo abandonado da vizinhança, entre outras tantas coisas. Foi aos poucos e de forma sutil que o intenso vaivém de visitantes na casa de suas anfitriãs, às vezes em horas mortas da noite, construiu uma atmosfera de desgraça iminente da qual o narrador não parecia se dar conta.

Quem eram aquelas mulheres? Nós, leitores, desconfiamos (embora Patrick não afirme isso em momento algum) que eram prostitutas. O narrador revela que Hélène, ex-artista de circo, “tinha sido amazona e depois acrobata, o que lhe conferia prestígio” aos olhos dos dois irmãos. Annie era a mais jovem e maternal. Sobre ela, escreveu: “Ía quase todos os dias a Paris, em seu Renault 4cv bege”. Mathilde, mãe de Annie, é descrita como uma espécie de megera clássica. O narrador declina, também, os nomes dos visitantes habituais das três mulheres: Jean D., Roger Vincent, André K. Todavia, não entendia o que esses homens faziam na vida e muito menos a natureza exata de suas relações  com as moradoras da casa.

A leitura do livro é fluida e fácil, sem floreios inúteis e nem parágrafos gigantescos, desses que arruínam qualquer texto, tornando-o monótono e desestimulante. É uma escrita limpa, clara, direta, como páginas de um diário que nos caísse em mãos. Trata-se de uma rememoração melancólica, e resignada de certa circunstância específica com final já sabido, ou suposto. Modiano usa sua matéria-prima costumeira, a memória, para construir uma obra-prima digna de um ganhador de Nobel. Interessante é este trecho do livro, que na edição da Record figura na quarta capa: “Certos objetos desaparecem de nossa vida ao primeiro momento de desatenção, mas aquela cigarreira permaneceu fiel a mim. Eu sabia que ela sempre estaria ao alcance de minha mão, na gaveta de uma mesinha de cabeceira, em um compartimento do armário, no fundo de uma escrivaninha, no bolso interno de um paletó. Tinha tanta certeza dela e de sua presença que me esquecia dela. Exceto nos momentos de melancolia. Então eu a contemplava sob todos os ângulos. Era o único objeto que testemunhava um período de minha vida do qual eu não podia falar com ninguém e que às vezes me perguntava se realmente tinha vivido”.

Modiano escreveu, certa feita, que “fixar os fantasmas olhos nos olhos é a melhor maneira de os eliminar”. Eu diria que é a única. Tentar, simplesmente, esquecer o que de ruim nos aconteceu, sem nos reconciliar com esse passado atroz e tenebroso é inútil. Outra coisa que escreveu, e que cabe a caráter nestas considerações, é o seguinte: “Como seria estranho se as crianças conhecessem como eram os seus pais antes de terem nascido, quando ainda não eram pais, mas simplesmente eles próprios!!!”. E não é? Afinal, como Modiano advertiu: “A memória em si própria está cheia de ácido, e acabará por não restar mais do que todos os gritos de dor, e de todos os rostos horrorizados do passado, com apelos cada vez mais surdos, dos quais vislumbramos contornos vagos”.

Boa leitura.


O Editor.

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Um comentário:

  1. Seu relato instiga. A memória é algo reduzido ou grandioso? Há memórias grandiosas e outras ridículas. Gostaríamos muito de as ter mais intensas, especialmente em relação a coisas úteis.

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