sábado, 26 de setembro de 2015

Eu, defasadamente pós-moderna

* Por Anna Lee

Diante do portão de entrada do cemitério de São Borja, numa rua de terra e malcuidada, quase não acredito que estou aqui. O trajeto foi longo. Não existe aeroporto em São Borja nem vôo direto para Uruguaiana, cidade mais próxima, onde dá para chegar de avião. Tive de ir do Rio para Porto Alegre, de Porto Alegre para Uruguaiana, com uma escala em Santo Tomé, por conta do mau tempo.

Em Uruguaiana, consegui um carro – se posso chamar de carro o veículo que me transportou. Por R$ 100,00, o motorista fez o trajeto de quase duas horas até São Borja. Foi camarada. Disse que normalmente cobra R$ 300,00. Se ele não estava em condições de cobrar, muito menos eu poderia pagar tanto.

Levei comigo a indicação de um hotel modesto, na avenida Presidente Vargas, quase ao lado da casa onde Jango nasceu. Quando me deram a dica, achei irrelevante a informação. Qual a diferença de ficar perto ou longe da casa onde Jango nasceu? Na dúvida, preferi ficar o mais próximo possível do meu assunto.

Mas, ao entrar na cidade, não foi diretamente para o hotel que me dirigi. Pedi ao motorista que me deixasse no cemitério. Ele não estranhou. Pelo contrário, até perguntou se eu precisava de ajuda com a mala.

Eu sim. Estranhei a naturalidade com que ele atendeu a meu pedido. Depois, vim a saber que o cemitério de São Borja é, senão o único, um dos mais importantes pontos turísticos da cidade, que não tem quase nenhum. Lá, estão os túmulos de Getúlio Vargas e Jango, um ao lado do outro, ambos descuidados. Foi com espanto que verifiquei um detalhe que pouca gente sabe. No meio dos dois túmulos, está o de Gregório Fortunato, o Anjo Negro, chefe da Guarda Pessoal de Vargas e que teria sido o mandante do atentado contra Lacerda, em agosto de 1954, episódio que provocaria o suicídio do presidente da República.

“E se o corpo de Jango não estiver aqui?” – foi o pensamento que me ocorreu, logo que me aproximei do jazigo de sua família. Nos muitos artigos que li sobre a morte de Jango, há referência à possibilidade de o corpo do ex-presidente não estar mais lá. Teria sido retirado para evitar a exumação, que poderia provar seu envenenamento. Achava a suspeita impossível, fantasiosa demais. Mas agora, diante do túmulo, não resisto à curiosidade. Empurro a tampa de cimento para experimentar se sozinho conseguiria removê-la.
       
Uma voz, de sotaque carregado, me tira do delírio:
- Precisas de ajuda?

É o coveiro. Trabalha há anos ali, perdera a noção do tempo, uns dez, talvez. Lembrava-se do enterro do “doutor” Jango, mas, naquele tempo, era menino. Seu pai fora amigo do pai dele. Realmente, contavam muitas histórias sobre o doutor, casos de aparição, de barulhos no túmulo, até de vozes. Mas nunca ouvira a história sobre o corpo ter sido retirado dali.

Quando morreu, Jango estava no exílio. Foi longa a negociação para que seu corpo pudesse entrar no Brasil, vindo da estância de Mercedes, na Argentina. Os militares resistiram. Não havia permissão. Na aduana, na ponte de Uruguaiana, que separa um país do outro, seus amigos não se conformavam com o fato de ele não poder ser enterrado em São Borja, sua terra natal. Os trâmites foram demorados até que chegasse a autorização do presidente Ernesto Geisel, com a condição de que ele fosse tratado como qualquer um, ou seja, seu caixão deveria ser aberto e o cadáver examinado.

Darcy Ribeiro, que fora ministro da Educação e chefe da Casa Civil do governo Jango, teve sua experiência individual no cemitério de São Borja:

Ali estava todo o povo de São Borja e numerosos políticos. Não me deixaram falar, temendo meus rompantes. Tancredo falou. Fiquei recordando a tristeza de Jango, já não pela derrubada do governo, mas pela dureza da ditadura, que o impedia de voltar ao Brasil. Nisso estão todos mancomunados. “Voltarei morto, com essa gente segurando a alça do meu caixão”. Afastado da multidão que cercava a sepultura, e cansado, me sentei num túmulo singelo de mármore que estava ali perto. Só depois reparei que era o túmulo de Getúlio. Os dois plantados ali, um do lado do outro.
       
Os dois relatos – um, a transcrição de um trecho de O Beijo da Morte, que escrevi em parceria com o Cony; o outro, um trecho do livro Confissões de Darcy Ribeiro – servem aqui como um convite. Um convite que eu, defasadamente pós-moderna e crente de que a verdade história única não existe, faço ao leitor para que comungue comigo na idéia de que todos os acontecimentos estão sujeitos a múltiplas interpretações.

Creio que a história se faz por meio de vivências individuais. Que diga Darcy Ribeiro. Que diga o repórter, personagem de O Beijo. Isso, num mundo que já vai além da pós-modernidade e que tende a ser racional e objetivo, na busca desesperada pela verdade única de todas as coisas. Uma forma de garantir a sobrevivência na realidade caótica estabelecida.

Esse é o meu convite. Uma possibilidade.
       
*Jornalista, mestranda em Literatura Brasileira, autora, com Carlos Heitor Cony, de "O Beijo da Morte"/Objetiva, ganhador do Prêmio Jabuti/2004, entre outros livros. Colunista da Flash, trabalhou na Folha de S. Paulo e nas revistas Quem/Ed.Globo e Manchete.

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