sábado, 26 de setembro de 2015

Antes que pessoas e coisas desapareçam


O romance “Primavera do cão” – lançado, no Brasil, pela Editora Record, no primeiro semestre deste ano de 2015, com tradução de Maria de Fátima Oliva do Couto – é, certamente, o livro mais intrigante dos sete de Patrick Modiano que tive o privilégio de ler. Foi publicado, originalmente, na França, em 1993, sob o título de “Chien de Printemps”. É um dos menos extensos entre os mais de 30 que publicou, com somente 110 páginas. Não tenho certeza, mas duvido que ele tenha escrito outro menor. Embora trate de um tema recorrente (uma espécie de obsessão do autor e também minha, que tenho escrito textos e mais textos a propósito), ou seja, a memória, Modiano deixa implícito um aspecto que abordei “n” vezes, porque sempre me incomodou.

O ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 2014 dá a entender nas entrelinhas que, se não houver nenhum registro (escrito ou de imagem: fotografia ou vídeo ou mesmo gravura) de pessoas e coisas, com o tempo, estas deixam, literalmente, de existir e para todo o sempre. Ninguém saberá, jamais, até o final dos tempos, que elas um dia existiram. Desaparecerão, inexoravelmente, sem deixar ínfimos vestígios. É como se jamais tivessem existido. Ninguém se lembrará delas, porquanto ninguém soube ou sequer desconfiou que existiram. No caso de pessoas, é o que tenho chamado, em meus textos, de “segunda morte”. E é a definitiva, ou seja, a da memória. Foram, simplesmente, esquecidas após a morte de todos que testemunharam sua existência, caso não reste, claro, nenhuma prova material disso.

O enredo de “Primavera do cão” é relatado, como na maioria dos livros de Modiano, por um narrador, neste caso um “aspirante a escritor”, que conta os fatos de que se lembra de seu relacionamento de amizade com um fotógrafo, chamado Francis Jansen, que teria sido amigo do lendário repórter fotográfico húngaro Robert Capa (cujo nome verdadeiro era Endre Emó Friedmann). Informo, para o leitor que nunca tenha ouvido falar dessa personalidade, que o profissional em questão celebrizou-se por fotografar as guerras e conflitos da primeira metade do século XX. O narrador convive com Jansen por pouquíssimo tempo. Somente nos três meses, se tanto, da primavera, inusitadamente quente, de 1964. O que os aproxima é o desejo do narrador de escrever um livro. Para tanto, propõe-se a registrar e catalogar informações para que “as pessoas e as coisas não desapareçam sem deixar vestígios”.

O “aspirante” a escritor foi convidado, meio que por acaso, por Jansen, para participar (junto com a namorada deste) de uma sessão fotográfica. A partir daí, passa a frequentar o ateliê do fotógrafo e decide catalogar o disperso acervo fotográfico do novo amigo. Este percebe que o jovem (então com 19 anos) talvez conseguisse, em seus textos, o que ele tinha como objetivo no seu ofício. Ou seja, fundir-se à paisagem e tornar-se invisível. Após os três meses de primavera, Jansen embarca para um exílio voluntário no México e desaparece para sempre. Nunca mais dá notícias. Passam-se trinta anos e daí o narrador resolve escrever o tal livro que tinha em mente, em que cataloga as derradeiras lembranças que tem do fotógrafo. Estas, por sinal, são poucas e esparsas; Todavia testemunham que Jansen pelo menos “existiu” e não é fruto de suas fantasias.

E do que o “aspirante” a escritor se lembra? De pouca coisa, e assim mesmo, cheio de dúvidas e de hiatos. Não consegue mais visualizar, com relativa nitidez, sequer as fisionomias das pessoas com que conviveu. Lembra, um tanto vagamente, do relacionamento amoroso conturbado do amigo, por exemplo. Do fato do marido de uma amante dele talvez ter sido agente nazista durante a guerra (eis aí o onipresente tema da ocupação da França na Segunda Guerra Mundial). Da festa de despedida de Jansen. De um derradeiro passeio pelas ruas de Paris que os dois fizeram. E da visita ao campo, em que o narrador reconhece a paisagem fixada em algumas fotografias (embora todas elas, certamente, tenham se perdido e tenham restado delas, apenas, vagas cenas em sua já confusa lembrança. Pudera! Passaram-se trinta anos!).

Modiano não diz nada, absolutamente nada, sobre o que aconteceu a Jansen após sua partida. Sequer especula a respeito. Restringe-se e em tentar resgatar seu passado, com os fragmentos de lembranças que lhe restam. “A memória é o essencial (para o escritor), visto que a literatura está feita de sonhos e os sonhos fazem-se combinando recordações”. Quem escreveu isso foi Jorge Luís Borges, o que é a mais lídima e óbvia expressão da verdade, da qual, nem sempre, nos damos conta. Sem ela não há “o que” e nem “como” escrever. Sem memória, não existe Literatura. Ademais, desde que devidamente registrada, é a única forma possível de evitar a “segunda morte” para pessoas, testemunhando que elas, e também lugares e fatos, de fato existiram, porquanto alguém testemunhou e partilhou seu testemunho, de forma concreta, com as gerações que o sucederam.

Boa leitura.


O Editor.

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Um comentário:

  1. Vagas lembranças se transformam em memórias quando nos reencontramos com amigos ou familiares que viveram os mesmos fatos, e juntos damos nome a pessoas e lugares, além de vermos fotos. Assim construimos uma possível História.

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