quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Plataforma zero


* Por Marcelo Sguassábia


Embarca logo, corre, ou chegaremos tarde ao tempo que perde a hora.

O casamento campestre, lá no alto da colina as noivas várias e loiras feitas de açúcar cristal. Véus de caramelos velhos, já roxos de tão vencidos, deixam sua calda melosa pelos caminhos de lírios. Sim, há noivas novas e gastas, há belas e remediadas, contrastando seus vestidos com os negros trajes do padre.

Na gaveta de uma cômoda de Roma, as passagens sabe Deus dizer pra onde. Lua de mel de laranjeira, abelha rainha reina sobrevoando sobre o voal. Pronta pra ir, querida? O navio está apitando o apito de Noel Rosa na fábrica de tecidos. Não fira mais seus ouvidos. Escuta, antes que me esqueça, o imenso rol de palavrões que farão você corar da nuca até os tornozelos, num enlevo de novelo de lã boa de alisar.

Desejos vão fumegando na cabine super luxo. Fogo alto, gente acesa. Olha a angústia que fermenta em meio ao limbo dos possessos, uma piscina até a borda de leite de ninfas lindas e faunos não-correspondidos com pulsos semi-cortados.

O próximo cipó para o Japão sai daqui a meia hora. Se agarre em vão nesse embalo e aproveite as escalas na Normandia e em Oklahoma. Mande um beijo pra sua tia no programa de calouros da TV da Groenlândia. Quem sabe telespectando, deslize pelas funções do descontrole remoto.

Estranhou? Pois se acostume. Nem começou o delírio que a olhos vistos é colírio dos que se amam além-mar, cercados de serafins tocando cuíca e ganzá. Há coisas que eu não te disse que é bom que fiquem bem claras. Dentre elas, um segredo: tem nariz verde, de vidro, o verme subnutrido no quintal da Dona Nina. Mil cavalos de potência a todo galope levam à terra do nunca chega, que é a mesma desde sempre e propriedade de ninguém. Antílopes desgarradas, por que se aninham quietas nos bojos dos alaúdes? Ninguém mata essa charada, tente adivinhar e diga, ganha um doce quem souber.

Só sei que agora o abandono me abanou o rabo, me deixou sem dono e desse jeito assim, no estado em que me encontro, uma mão na frente e outra em outrora. É um tiquinho de voz o que restou na goela da gravura do Van Gogh, aquela que tenho em casa e que você tanto gosta.

Sobrevoamos nesse instante a seara dos poemas inconclusos, ao mesmo tempo em que se decifra o enigma dos enigmas. Não é possível que ninguém perceba esse barulho estranho na turbina esquerda do tapete mágico. Dá um look around no Colosso de Rhodes em sua cadeira de rodas. Ora quem diria, do alto desse ultraleve se vê perfeitamente Rhodes sobre rodas fazendo arte abstrata nos Jardins da Babilônia. Reclinam suas poltronas os doze desdentados duendes de Detroit, conferem seus bilhetes, seus vauchers e reservas no Resort Hostil.

Quarteirões de queijo com casas caiadas, uma tulha às moscas e uma ponte pênsil que não leva a nada, mas que ainda assim é natureza morta do pintor mirim. O trem nessa lenga-lenga, faz que vai mas não vai, e segue esse trilho mesmo, o mesmo trilho de ontem que continua amanhã.

Chegamos, sem termos ido. A van que nos translade do poço dos pesares ao pico dos prazeres, em rasgos paquidérmicos de riso.

* Marcelo Sguassábia é redator publicitário. Blogs: WWW.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) e WWW.letraeme.blogspot.com (portfólio).

Um comentário:

  1. E vamos passo a passo, rindo e tentando entender tudo. Até que a vida os una. Porque "até que a morte os una" já foi dito por Chico Buarque.

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