sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Devaneios de uma roqueira 10


* Por Fernando Yanmar Narciso


CAPÍTULO 5(PARTE 1/2)


Adoro sentir esse ventinho gelado no rosto quando ando de carro... ‘Ocêis’ se lembram daquele táxi que era quase um apartamento completo, que Didi Mocó dirigia no filme dos Trapalhões na terra dos monstros? O interior do carro de Ulysses faz aquele táxi parecer uma caixa de fósforos. Microondas no porta-luvas, TV nos encostos, colchão d’água no banco traseiro, hell, aqui atrás tem até um mini-bar de oxigênio aromatizado, que foi meio que uma modinha na década de 90! Como ele conseguiu equipar tanto essa lata velha na base daqueles trambiques furados the world may never know...

Esparramada no banco de trás e com as pernas cruzadas sobre o encosto do banco da frente, enquanto meu ex tentava alisar a coxa de Barbie a cada quinze segundos, lá nos fomos pelo asfalto vazio. Desde que conhecemos Ulysses e ele tentou ser o manager das Margaridas, firmamos um acordo informal na hora do ‘jererê’: Viajando de carro, Barbie canta, ele batuca e eu imito a guitarra.

♫♫♫I don't love easy, babe/ Got to be slow/ Simple to talk about love/ But I want to know/ All the things you're thinking/ When the colored lights are blinking/ And your head starts slowly sinking down/ Cause it's hard coming, love/ Hard coming, love. . . coming love’**

Mesmo que seja só uma brincadeira e que minha prima esteja só ‘mumunhando’ a música, a voz dela é uma coisa que ‘ocê’ simplesmente tem que parar e prestar atenção. Às vezes é até difícil manter a concentração no que ‘tô’ tocando em nossos shows porque ela canta pra carácoles! Por causa da voz de minha prima, as Margaridas NUNCA tocaram música de fundo em botequim algum, ou somos o centro das atenções ou nada feito!

- Quando ‘ocê’ vai trocar esse pára-brisa, vagabundo? Esse trem fica cada dia mais feio e trincado! Com tanta coisa que vive comprando pra esse carro ‘véio’ e neca de pensar no básico, né?- E lá vem ela acabar com a nossa brincadeira...
- Uai, sabe o quanto é difícil conseguir vidro pra um carro da década de 40, Barbie? Já é um suplício conseguir pneu que sirva nele!
- Se ‘ocê’ continuar dirigindo com a cabeça pra fora da janela, dia desses um carro vai passar colado no seu sucatão e acabar te degolando...
- Ah, Barbie, dá pra parar de implicar ‘cum eu’ só um tiquinho? Tá um dia tão lindo, tranquilo aqui na estrada... Aqui, dá um tapinha, fica no relax...
- Hmpf, eu, fumar um troço que eu nem sei se é mesmo erva e nem com quem ‘ocê’ consegue... ‘Num’ dá pra eu ir encomendar comida pro posto se eu tiver de onda, né?
- Ah, prima, pára com esse trem! ‘Bora’ só continuar cantando até a cidade, ‘vamo’?

Por mais que Barbie e eu sejamos amigas e quase irmãs, qualquer rolé de carro de quinze minutos ao lado dela parece durar duas horas, mesmo com a estrada vazia. Imagina a gente numa turnê ou num engarrafamento! UI! Me amarro num friozinho, mas parece que o dia foi ficando cada vez mais frio depois que eu fiz a caminhada. A menos que ‘nóis’ vai beber umas doses de Dreher mais tarde lá no bar do Escocês, a blusa de flanela grossa e as luvas longas não vão dar conta do recado...

E lá estava ela, nossa amada e ‘lixenta’ São Modesto! Alguma vez já sonharam dar de cara com nada menos que o Arco do Triunfo ao acordar? Pois é exatamente isso que temos na entrada da cidade! Não o verdadeiro, mas uma réplica, pra lá de tosca, três vezes menor. Dizem que foi o presente de bodas de prata do prefeito Chicão pra ‘primeira-dama’ Maria Verônica, mas há obviamente controvérsias.

I dunno, pra mim ele só mandou construir esse trambolho pra mostrar que podia fazer aquilo que desse na telha com a cidade. Só a primeira de muitas outras obras dele que vão do nada ao lugar nenhum. O conservatório costumava ter a pracinha da cidade na frente dele. O lugar era o único cartão postal da cidade com seu coreto, árvores verdinhas, parquinho, quadras de peteca e vôlei, espaço para shows...

Mas há cinco anos Chicão resolveu construir uma nova e faraônica prefeitura bem em cima da praça, sem desapropriar legalmente o terreno nem nada. Com cinco anos e essa obra amaldiçoada só tem uma parede erguida e os andaimes. Melhor nem saber o que foi feito com o dinheiro da construção...

Certas coisas nunca mudam por aqui. Carroceiro pra todo lado, velhinhos sentados à varanda enrolando fumo e batendo papo, tiazonas fofocando, árvores no passeio que só são regadas quando chove... O padre meio lelé que toca violino sentado na torre da capela pra chamar os fieis... A Kombi do sorveteiro que vende 30 bolas a cinco reais... ‘Tragam latas e bacias!’, berra a boca da difusora no teto da Kombi. A meninada nem terminou de engolir o café da manhã e já sai correndo atrás do sorveteiro como um bando de jihadistas.E o papo e as implicâncias de minha truculenta prima continuavam correndo soltos dentro do calhambeque lilás.

- Mas também, prima, pra querer mudar alguma coisa na sua vida, ocê tem que dar um jeito de segurar seu lado selvagem.
- Ela tem razão, Barbie. Às vezes parece até que ‘ocê’ tem ácido muriático correndo nas veias.
- Quem te convidou pra conversa, vagabundo?
- Tá vendo? É por isso que o posto vive vazio, Bárbara. Já vem atender os freguês com o tacape na mão...
- Mas quê que eu posso fazer, gente? É meu sangue de índia guerreira, uai...

CONTINUA...

** Letra de Hard Coming Love, da banda psicodélica United States Of America https://www.youtube.com/watch?v=dtWS2IXsLf0

* Escritor e designer gráfico. Contatos:
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Conheçam meu livro! http://www.facebook.com/umdiacomooutroqualquer


Um comentário:

  1. Aléxia está menos furiosa, mais amável, e fora da TPM. Assim, ela e Bárbara ficam divertidas.

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