segunda-feira, 20 de julho de 2015

Salvando estranho da inanição com o próprio leite

O escritor norte-americano John Steinbeck foi uma das figuras mais fascinantes da Literatura mundial. Seu romance “As vinhas da ira”, publicado em 1939, praticamente dividiu um país, no caso os Estados Unidos, dada a denúncia que contém da deslavada exploração do homem pelo homem. Uma grande parcela de pessoas (óbvio, a dos “exploradores”) opôs-se ferozmente contra ele, adquirindo milhares de exemplares de seu livro, mas não para lê-los, mas para queimá-los em praça pública, como se idéias pudessem ser destruídas pelo fogo ou por qualquer outra forma. Claro que não podem. Todavia, outra parcela, suponho que muito maior (no caso a dos “explorados”, ou dos que por razões éticas, ou conceituais ou humanitárias e lógicas, opunham-se a essa exploração), findou por consagrar seu tão polêmico romance, que hoje é, praticamente, unanimidade, não apenas nacional, mas mundial.

Escrevi muito sobre John Steinbeck e também sobre essa obra-prima ficcional de todos os tempos. “As vinhas da ira”, que por algum tempo enfrentou tão feroz oposição, valeu, tempos depois, os principais prêmios literários existentes ao seu autor, desde o National Book Award, passando pelo Pulitzer de ficção e culminando com o Nobel de Literatura de 1962. Hoje, todas as relações dos 100 melhores romances de todos os tempos – como, por exemplo, as da revista Time, da The Daily Telegraph, da Modern Library, da Le Monde e da BBC, entre tantas outras – incluem, sem pestanejar, esse livro e com distinção. Nem poderia ser diferente. Além disso, ele é lido com freqüência nas aulas de Literatura dos ensinos secundário e universitário norte-americanos pelo seu contexto histórico. Só quem não entende nada do riscado não admite que se trata de magnífica obra-prima, quer pela forma como foi escrita, quer, e principalmente, pelo conteúdo.

Na crônica que escrevi em 19 de janeiro de 2010, intitulada “Ainda Steinbeck”, observei: “No que esta obra se distingue das demais, de outros escritores, ou mesmo deste? Na verossimilhança com a realidade da história narrada. Na convicção com que o autor trata de assunto tão delicado (tanto que os originais manuscritos não têm quase rasuras, acréscimos e cortes, o que demonstra que a história foi escrita como que num único “sopro”). Na linguagem sóbria e equilibrada de Steinbeck. Eu poderia enumerar ainda uma dezena de virtudes, mas não o farei. Deixo isso por sua conta, na leitura desse memorável romance”. Hoje eu acrescentaria que “As vinhas da ira” se distingue das demais obras também pelos personagens que o autor criou. E, sobretudo, pela protagonista feminina, para mim absolutamente inesquecível, no caso Rosa de Sharon, uma das integrantes da família Joad.

À minha revelia, estou convicto que a menção dessa figura, exercendo papel principal na história, vai gerar polêmica. Já gerou com as pessoas com quem comentei a respeito. A argumentação é de que Rosa de Sharon não passa de figurante no enredo, que é citada pouquíssimas vezes e que não interfere na trama central do romance. Quem afirma isso tem certeza do que está afirmando? Duvido! Essa opinião expressa, mesmo que remotamente, a intenção do autor? Duvido mais ainda! Tanto essa personagem é importante, diria fundamental, no romance, que Steinbeck encerra “As vinhas da ira” com uma ação dela, tão abnegada, que raia à inverossimilhança. Para não haver dúvidas a propósito, transcrevo esse encerramento do romance, exatamente como o autor o fez.

Antes, contudo, cabem mais estas observações, que fiz na crônica “Ainda Steinbeck”: “Poucos escritores teriam a coragem de terminar um livro dessa forma. E os que se arriscassem, dificilmente deixariam de resvalar para a pieguice. Nos parágrafos finais do romance, Steinbeck narra que a família Joad – esfacelada e desfalcada pela morte dos avós, pela fuga de Tom, que para defender um trabalhador, agrediu um guarda que o espancava e se tornou foragido da justiça, e pela morte do bebê, que Rosa de Sharon deu à luz – abrigava-se, precariamente, da enchente que atingia a região e afetava, sobretudo, os acampados, em um barracão abandonado.
Os refugiados “oakies” não tinham para onde ir e sequer o que comer. Muitos morriam de fome, outros estavam doentes e alguns agonizavam Num canto, um deles estava morrendo de inanição. Rosa de Sharon havia acabado de ter o bebê, que morrera a seguir. Estava com os peitos repletos de leite. E não teve dúvidas. Em cumplicidade com a mãe, teve um gesto de suprema abnegação e solidariedade. Deu os seios para o moribundo mamar e dessa forma conseguir sobreviver”.

E Steinbeck descreve exatamente assim a dramática e solene cena, com que encerrou o romance:
 “-Sciu! – fez Mãe. Lançou olhares a Pai e tio John, que estavam contemplando o doente. Olhou Rosa de Sharon, envolta no cobertor. Seus olhares fugiram dos de Rosa de Sharon e tornaram a encontrá-los. E as duas mulheres liam tudo nas respectivas almas. A moça ofegava, respirava com um ritmo curto e apressado.

Ela disse:
- Sim.

Mãe sorriu:
- Eu sabia. Eu sabias que tu me compreendeu. – Olhou as mãos enlaçadas com firmeza sobre o colo.

Rosa de Sharon disse baixinho:
- Saiam vocês todos... por favor. – A chuva fustigava fracamente o teto.

Mãe inclinou-se sobre a filha e com a palma da mão afastou as mechas revoltas que lhe caíam sobre a testa e lhe deu um beijo na testa.
- Bom, andem depressa, vão saindo – disse Mãe, pondo-se de pé. – Fiquem aí fora um pouquinho.

Ruthie abriu a boca para dizer qualquer coisa.
- Sciu! – fez Mãe. – Fica quieta e vá saindo, -
Empurrou-a porta afora, e o mesmo fez com os outros. Por fim, pegando o menino pela mão, também saiu, fechando a porta guinchante atrás de si.

Por um minuto, Rosa de Sharon permaneceu imóvel no centro do galpão, em cujo teto cochichava a chuva. Depois ergueu-se pesadamente, enrolando-se mais no cobertor. Lentamente, dirigiu-se ao canto escuro e quedou-se a olhar o rosto sofredor do desconhecido, lendo-lhe nos olhos arregalados e cheios de temor. Então, com vagar, dobrou os joelhos e deitou-se ao lado dele. O homem esboçou um movimento negativo com a cabeça, um movimento fraco e muito lento. Rosa de Sharon desfez-se do cobertor, deixando os seios desnudos.
- Tem que ser – falou, aproximando-se mais dele, e puxando-lhe a cabeça a si. – Assim – disse. Apoiou-lhe a cabeça com a direita e seus dedos lhe sulcaram suavemente os cabelos. Ergueu os olhos e seu olhar percorreu o galpão escuro e seus lábios cerraram-se e ela sorriu misteriosamente”.

Ufa! É de tirar o fôlego! Ou não é? O que dizer, depois de ler uma descrição como essa? É coisa de gênio! Só mesmo um escritor genial, como John Steinbeck (que se confessava admirador do russo Fedor Dostoievski) consegue dar absoluta verossimilhança a uma cena e, principalmente, a uma atitude tão inverossímil e improvável como esta! Qualquer comentário a mais seria supérfluo e redundante. Só posso acrescentar, a título de desafio aos que me contestam: Rosa de Sharon é ou não é personagem feminina inesquecível? Como esquecer um gesto de tamanha abnegação? Só os insensíveis, ou os muito burros, não valorizam atos como este e esquecem quem os protagonizou.

Boa leitura.

O Editor.

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