terça-feira, 21 de abril de 2015

Moscouzinho


* Por José Calvino de Andrade Lima


O TREM já não corria na linha férrea e as Estações estavam fechadas. Era a greve dos ferroviários.

Cristo Mulato ia pegar o trem das sete e dez, quando então percebeu que a Estação Central do Recife estava fechada e que muitos ferroviários, misturados com os passageiros, anunciavam a greve. Cristo resolve pegar o ônibus (não para furar a greve) e vai até a cidade do Jaboatão, certificar-se de que realmente aquela greve era legal. No ônibus, os comentários eram diversos:
- Aquilo qui é home!
- Arraia apóia.
- Moscozinho é o QG dos comunistas...
- A nossa sorte dependerá do apoio da igreja, que não tivemos na primeira...
- É isto aí, companheiros, na outra vez de igreja brasileira só teve o padre do catorze RI (14º RI), que apoiou a nossa greve, colocando a bandeira do Brasil na linha do trem...

“Arraia”, ele sabia, se referia ao então governador de Pernambuco, doutor Miguel Arraes e “moscouzinho” era a cidade de Jaboatão, considerada pelos militares o centro das agitações subversivas, dado o diminutivo da capital da Rússia (ex-URSS). Fora a primeira cidade do Brasil a ter um prefeito comunista.

Na plataforma da Estação de Jaboatão estavam diversos camponeses que se distinguiam pelas vestes e pelo linguajar, mas era observada a influência política de ideologia diferente, principalmente para aquele povo ignorante. A maioria com radinho de pilha ao ouvido. Cristo a tudo isto observava, inclusive a um politiqueiro, que fazia um comício em praça pública:
- Meus companheiros de ideologia e de sofrimento...

Dialogando com Onivlakovitch sobre as greves, este advertiu ao Cristo:
- Não se meta nisso. Lembre-se das palavras de meu pai: “A política é muito complexa, é como religião”. Eu, mesmo, deixei até de ser protestante. Lá no quartel perguntaram qual a minha religião e eu disse que era católico. Estou pensando que vai haver uma revolução. Os camponeses, na semana passada, dormiram no quartel. Dizem que foi ordem do governador...
- Irmão, eu estou achando uma verdadeira anarquia. Lá na Estação de Floriano embarcaram no trem um bocado de camponeses, com rádio portátil e enxada no ombro, apontando para o quartel e dizendo: “Estes generais de saia...” No trem, o condutor solicitava: “a passagem, por obséquio.” – eles respondiam: “Que nada, é por conta de Pai Arraia e Julhão (ex-deputado Francisco Julião, líder das ligas camponesas, nos anos 60).

Onivlakovitch aproveita e comenta um assunto sigiloso ao Cristo:
- Esse assunto aqui morre. Lá, mesmo, esses civis têm apoio do Governo e do Comandante Geral coronel Hangho Trench. Ontem mesmo, um civil disse que tirava a minha farda, porque era cabo eleitoral de um deputado desses...
- E o que você fez?
- Dei-lhe uns conselhos e o mandei dizer ao padrinho dele.
- Eu o teria prendido.
- Prender não era bom, porque iria ferir o provérbio popular: “não matei, nem roubei...”
- Acontece porém, irmão, que nem todas as vezes podemos agir com cortesia, sendo às vezes preciso um pouco de energia física.
- Em casos especiais, não é?
- É claro.
- Você, porque não entra na Polícia?
- Estou com vontade. Um soldado, por exemplo, está ganhando mais do que eu, um telegrafista. Aliás, nós lá não sabemos bem o que somos, já que são tantos os apelidos que botaram: “Amostra grátis”, “golinha”, “rola voou”, “lá vai a guia, “G5...”. Cristo Mulato foi então entrecortado por Onivlakovitch, admirado:
- Então está demais a baderna e a corrupção lá na Estrada de Ferro! Por isso que eu segui os conselhos do meu pai. Está vindo gente de lá assentar praça na polícia com medo de ser demitido!
- Estão falando que a gente só não vai ser demitido por causa do presidente João Goulart.
- Rapaz, é tanto cabra safado politiqueiro nesse país, que já estão confundindo Deus com Pátria. Eu não vejo patriotismo, vejo é cada um querendo subir às custas dos outros e o resto é que se dane, se fodam.
- Irmão, eu não sei como você entrou na polícia, o seu pai já foi preso e se ele fosse vivo eu acho que ele não queria...- foi entrecortado placidamente por Onivlakovitch:
- O homem tem o seu livre arbítrio. Papai foi preso, mas a culpa de sua prisão não foi da polícia, foi da gretueste e dos seus falsos amigos.

Na manhã do dia 31 de março, do ano de 1964, as emissoras de rádio transmitiam a todos os trabalhadores que entrassem em greve geral. No outro dia, 1º de abril, às treze horas mais ou menos, o Governo era deposto pelas tropas do Exército. Houve diversas prisões em “moscouzinho”. Após uma semana, um oficial do Exército perguntou ao Cristo Mulato qual era o lado dele e a resposta foi imediata:
- Brasil!

O referido oficial achou a resposta muito irônica e resolveu prender o Cristo, enquadrando-o como “subversivo” e anticristão.

No quartel do 14º Regimento de Infantaria, em Socorro-Jaboatão, Cristo foi submetido a interrogatório:
- Você vive pichando muro lá em “moscouzinho”, não é?
- Não senhor. Deus me livre!
- Você não acredita em Deus e diz: “Deus me livre?” Olhe, moleque safado, nós já sabemos que você garatujava os muros lá em Casa Amarela, criticando o nosso Senhor Jesus Cristo. É mentira, hein?
- Senhor, eu gostava de desenhar, era uma criança, mas agora que não faço mais isso.
- Você colocou uma placa da propaganda política em sua casa. É mentira, hein?
- Não, apenas a casa pertence à Rede Ferroviária, e o superintendente era candidato, junto ao chefe de Relações Públicas, a cargos eletivos. Pediram e eu tive que obedecer, para não sofrer perseguições...
- Continua... fale mais, seu porra!
- Me respeite.
- Respeitar o quê? Dá umas piabadas nesse moleque.
- Não façam isso comigo, pelo amor de Deus!

A salvação do Cristo foi um oficial superior que chegou na hora, e ordenou:
- Ninguém bate!, o que fez esse moreno?
- Ele é comunista, vivia no grupo dos pichadores em muros e fazendo política na Rede.

O imparcial militar deu a ordem:
- Solta o moreno. – e virando-se para o Cristo – Veja lá, você não apanhou, não se meta mais nisso. Na próxima, já sabe como é, ahn?
- Muito obrigado, eu nunca me meti em política. Muito obrigado...

Cristo saiu pensando: “Será que foi por eu haver falado lá na Estação que estava em dúvida quanto à existência de Deus? Ave Maria! Meu Pai do Céu, será que o portuga estava certo?: “Puta que o pariu, nego safado!” Ele dizia... – e continuava a pensar: “ Faça com que tudo dê certo, eu sou patriota. É a vida, Jesus nasceu pobre, não caiu do céu, cresceu, viveu no meio do povão, alguns seguiram-no, a maioria foram covardes e levaram-no a ser crucificado. Ele dizia ser o filho de Deus, quem sabe? Mentir é necessário, quem é que não mente? A humanidade mente porque mentir é realmente humano. Em relação à mentira, Abraão Lincoln disse: ‘ É possível enganar parte do povo, todo tempo. É possível enganar parte do tempo todo povo, jamais enganará todo povo, todo tempo.’”

Onivlakovitch era cabo da Polícia, não exerceu a profissão de telegrafista porque o quadro era restrito, achava melhor nas fileiras. As promoções eram rápidas. Lembrou ao Cristo o acontecido no dia da revolução de 64, a morte do ex-soldado “Barruada”, que foi abatido junto ao edifício JK, no Centro do Recife, durante manifestação contra a deposição do governador Miguel Arraes. No protesto, um grupo cantava o Hino Nacional e carregava bandeiras do Brasil. Os soldados teriam atirado quando jogaram pedras contra as tropas revolucionárias, sendo respondidos a balas, resultando em dois mortos e um ferido.

Cristo lembra do ex-soldado da Polícia do Exército (PE) “Barruada”: “No Exército, ele fazia o símbolo nazista nos tamancos, tinha idéias nazistas. Foi dar viva ao nazismo... era um idiota, pois eu passei por vexame no 14 RI e não sofri porque realmente não tenho experiência por nenhum partido. Sou adepto ao nacionalismo, como patriota, e digo, sinceramente, que gente ruim tem em todos os setores, seja na vida militar, seja na vida civil, como também existem pessoas compreensivas, como foi o caso do Oficial que não deixou que me espancassem.”

“Barruada” era muito jovem. Em 64, pelos cálculos, tinha uns vinte e dois anos. Era um meninão, um adolescente... também a PE (Polícia do Exército), parecia com a Gestapo alemã...
- Irmão, o silêncio é importante, mas a verdade tem que ser dita. Aquilo tudo eu não acho que foi revolução não, acho sim que foi um golpe militar... – foi entrecortado por Onivlakovitch:
- Eu disse revolução, mas, mais das vezes eu digo que foi o “golpe de 64”!

Em 1966 Cristo Mulato entra na Polícia Militar do Estado. Lá, quase não falava, era considerado como um bom Soldado ou Policial.

Nota do autor: No Recife, o regime fez as suas primeiras vítimas: os estudantes Ivan Rocha Aguiar e Jonas José de Albuquerque Barros (mortos) e um ferido, não identificado!

(Capítulo XIV do livro “O Cristo Mulato”, ed. do autor – 1982).

*Escritor, poeta e teatrólogo pernambucano.Vejam e sigam Fiteiro Cultural: Um blog cheio de observações e reminiscências – http://josecalvino,blogspot.com/



Um comentário:

  1. Um colega do Instituto Histórico e Geográfico de Montes Claros, que se aposentou como coronel da Polícia Militar, afirma categoricamente que não houve torturas e nem mortes no Brasil durante o Governo Militar. Ninguém contradiz nosso tesoureiro, mas eu mesma fiquei a lembrar das afirmações do ex-presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad. Ele diz que não aconteceu o Holocausto. Cada um acredita no que quer.

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