terça-feira, 24 de março de 2015

Diálogo com cães e porcos

* Por Clóvis Campêlo


O escritor argentino Jorge Luís Borges afirmava o seguinte: “Dá o santo aos cães, atira as tuas pérolas aos porcos; o que importa é dar”.

Do mesmo modo, Renato Boca-de-Caçapa, o filósofo do povo, costuma dizer: “Não queira saber se são porcos, jogue as pérolas”.

Assim, os dois, contrapõem-se a citação bíblica (Mateus, capítulo 7, versículo 6) que afirma o contrário: "Não deis aos cães as coisas santas, nem deiteis aos porcos as vossas pérolas, para que não suceda de que eles as pisem com os pés e que, voltando-se contra vós, vos dilacerem."

Afinal, se é da natureza e do direito dos porcos apreciar a lama e não as pérolas, não nos cabe fazer-lhes críticas desnecessárias, e sim, apenas, lamentar que na impossibilidade do diálogo a comunicação não aconteça.

O poeta argentino e o filósofo do lúmpen mostram-se mais abrangentes e dialéticos do que a máxima bíblica, que na sua essência deveria estar repleta de comiseração e paciência. E, ao mesmo tempo, transferem a importância do resultado para o ato em si. Isenta cães e porcos da responsabilidade de serem o que são, já que nisso não há nenhuma maldade implícita e apenas uma conjunção de vetores naturais que desembocam nessa resultante.

No texto bíblico há uma crítica subjacente tanto a impureza canina quanto à insensibilidade suína. Em suma, se tens algo de valor não a dê a quem não a merece. Esse separatismo não corrige uma provável situação de diferença e apenas a autentica. Aos porcos e aos cães, ao longo de toda a sua existência, só lhes caberá ser porcos e cães. Intrinsecamente, também, se a ti foi dado o reconhecimento e o direito de ter pérolas, não vos cabe contrariar a lei. Deixai aos porcos o direito de chafurdar na lama e aos cães a eterna insantidade. As pérolas são tuas. Divida-as apenas com quem de fato as mereça.

Eu, particularmente, acho mais simpáticas as posições do poeta e do filósofo, porque, antes de tudo, sobrepõem o ser ao ter. A generosidade do dar, independentemente do resultado final atribuído ao que foi dado, para mim, substitui com vantagem o egoísmo do ter apenas por ter. Se essa última condição não significa por si só melhoras concretas e significativas para porcos, cães e humanos, não existe razão nenhuma para ser mantida. Estabelecer uma linha de comunicação entre eles, talvez seja mais do que necessário.

Porém, admito que querer dialogar com porcos e cães talvez seja mais uma utopia desnecessária e inútil. A estagnação, porém, com certeza não nos levara a lugar nenhum. Evoluir é quebrar paradigmas e regras consagradas e não discutidas. Ainda mais quando estamos no topo desse triângulo estabelecido.

Aos porcos e cães pode ser dado o direito de evolução e transformação. E às pérolas pode-se ser atribuído um outro valor que abandone o absoluto e transite pela relatividade.

Para mim, não está definido que usufruir do valor das pérolas sejam um permanente direito humano.

Recife, março 2015

* Poeta, jornalista e radialista, blogs:



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