segunda-feira, 23 de março de 2015

Afeto na marra


* Por Daniel Santos



De vez em quando, ainda me visitam. Nem entram mais pela porta dos fundos, como antes, mas esperam que eu apareça na janela do sobrado para me acenarem amistosos. É como se dissessem “tudo bem” e se vão.

Ignoro o que pretendem desde quando me surpreenderam a sós, me imobilizaram sem violência e tiraram mostras de pêlos, unhas, saliva, sangue, pele ... Um acervo a meu respeito. Ou a respeito da espécie?

Talvez estejam criando seres à minha imagem e semelhança, me desdobrando noutros mundos. Têm planos para mim e nada posso obstar! Não me querem mal, e admito certa reciprocidade, embora com  cautela.
                                                
Trata-se, afinal, de afeto em desvantagem: eles me quiseram, mas eu tive de aceitar a escolha, como criança sob ordens de um adulto. Chegam a adivinhar minhas necessidades e, antes mesmo de senti-las, eles provêm!

De duas, uma: ou sou previsível, ou assim me tornaram para imposição dessa tutela que imobiliza e conforma. Já não reajo, nem quero. E quando eles demoram a aparecer, vou até a janela dar uma espiada.

 * Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.

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