domingo, 22 de fevereiro de 2015

Vozes da infância


* Por Pedro J. Bondaczuk


As pessoas das classes mais favorecidas têm a mania de lembrar da infância como um período de absoluta felicidade, de um encantado jardim do Éden, de onde teriam sido expulsas tão logo perderam a inocência e, como Adão após comer do fruto proibido, constataram, constrangidas, que “estavam nuas”. Alguns são até sinceros ao atribuir essa suposta ventura (que na verdade sequer tiveram) a essa fase tão distante de suas vidas. Provavelmente caíram na armadilha da memória, que fantasia os acontecimentos pretéritos e lhes dá, voltas e meia, conformação de sonho, diferente, portanto, da realidade.  

Da minha parte, não considero que esta tenha sido a minha etapa mais feliz. Claro que me recordo, com saudade, de alguns fatos e pessoas que me marcaram para sempre. Todavia, no cômputo entre as coisas boas e as ruins que vivi nesse período, o saldo acaba sendo negativo. Sou muito, mas muito mais feliz agora, no ocaso da minha vida, quando além de pai, sou avô, do que fui então.

Fui um garoto muito turbulento e inquieto (diria, rebelde), o que me tornou sujeito a muitos acidentes, para desespero dos meus pais. Curiosamente, nunca fraturei, na ocasião, perna e nem braço, como ocorre com tantas outras crianças através dos tempos, embora tenha sofrido quedas sucessivas (e perigosas) de árvores, de bicicleta, do alto de um armário onde subi para pegar doce que minha mãe não queria que eu pegasse (“vai estragar seus dentes”, dizia, para justificar a proibição) e de muitos outros lugares. Bem que o ditado diz que “Deus protege, em especial, os loucos e imprudentes”. Creio que proteja mesmo.

Dos inúmeros acidentes que tive na infância, quatro me marcaram em especial. Dois deixaram-me cicatrizes físicas (que carrego até hoje) e outros dois marcaram não o corpo, mas a mente. Vamos a eles?

Lá pelo fim dos anos 40, eu vivia num sítio, que meu pai havia arrendado de meu avô paterno (que era fazendeiro) em Horizontina, Oeste do Rio Grande do Sul, onde nasci. Passava boa parte dos meus dias em casa dos meus avós, dos quais eu era (evidentemente) o xodó. Meus pais trabalhavam, de sol a sol, na lavoura, cultivando, entre outras tantas culturas (como milho, feijão e amendoim), trigo, que era a sua especialidade. Afinal, procediam de uma região da Ucrânia (ou da Rússia?) que era grande produtora desse precioso cereal.

Minha avó assava, todas as manhãs, pão de centeio, num enorme forno de barro. Depois que este ficava pronto, retirava as cinzas, que colocava em um monte, separando-as das brasas, que punha noutro. Nunca misturava os dois. Provavelmente fazia essa separação até por prudência, para evitar que acontecesse o que, justamente, me aconteceu.

Depois que a avó limpava o forno, eu gostava de cobrir meus pés com as cinzas, quentinhas, quentinhas, que me davam uma sensação deliciosa de aconchego. Num determinado dia, porém, não foi ela que fez a limpeza. Foi uma das minhas tias (não me recordo qual delas). E esta não agiu com a mesma prudência da vovó. Ou seja, colocou, num monte só, juntas, tanto cinzas quanto brasas.

Sem saber disso, lá fui eu enfiar os meus pés nos tais resíduos do forno. Para quê?! Sofri severas queimaduras de segundo grau, que me deixaram marcas que até hoje, passados mais de sessenta anos, ainda ostento. Foi um corre-corre infernal. Afinal, o médico mais próximo ficava a uns 60 quilômetros de distância da fazenda. Meus avós, com aquela sabedoria ditada pela experiência, se encarregaram do tratamento, que me manteve de “molho” por semanas, mas não deixou seqüelas, a não ser as já tênues marcas da queimadura.

Outra cicatriz que ostento foi obra de um gato preto, da raça angorá, que, curiosamente, parecia gostar muito de mim (imagino o que me faria se não gostasse). Num determinado dia, porém, não apreciou lá muito as “carícias” que lhe fiz, que devem ter sido mais torturas do que carinhos, claro.

Na ocasião, eu tinha cinco anos de idade. O bichano, para fugir do meu assédio, escondeu-se embaixo de um armário da cozinha. Tentei puxá-lo, mas pelo rabo. Para quê!! O traiçoeiro felino cravou, no dorso da minha mão esquerda, profundamente, suas garras, que mais pareciam as de um tigre. Não foi um arranhão superficial. Foi profundo. Meu sangue jorrou para todo lado, assustando, sobremaneira, minha carinhosa avó. Conseqüência: trago, até hoje, as cicatrizes desse arranhão, curiosamente em forma de duas linhas paralelas perfeitas.

Como frisei, porém, tive dois outros acidentes que, se não deixaram marcas físicas: deixaram-nas no espírito. Um foi quando caí sobre um certo tipo de cactos, de espinhos extremamente finos, quase invisíveis, que penetraram em todas as partes do meu corpo. Deu o que fazer para a minha mãe extraí-los, em uma bacia de água quente. Foi uma sensação horrível!

No outro acidente, sentei-me sobre um caixão de abelhas, na colméia que meu avô cultivava em um de seus pomares (tinha vários deles espalhados por sua fazenda). Os temperamentais (porém utilíssimos) bichinhos, a princípio, pareceram entender (e quem pode jurar que não?) que se tratava de traquinagem de uma criança sem nenhum juízo.

Rodearam-me, ameaçaram-me, mas nada me fizeram. Como, porém, sempre há uma exceção em toda a regra, uma, somente uma das abelhas, resolveu defender, ferozmente, seu espaço vital. E ferroou-me, sem dó e nem piedade, pitorescamente, no “pipi”, o que doeu uma barbaridade. Tanto que sinto essa dor (no fundo da memória) até hoje.  

A lembrança desses episódios (e de tantos outros, de cuja narrativa vou poupar o paciente leitor), me traz, não sei por qual carga d’água, à memória, os versos do poema “Contrição”, de Manuel Bandeira, que dizem:

“Vozes da infância contai a história
da vida boa que nunca veio
e eu caia ouvindo-a no calmo seio
da eternidade”.

Não sei se é o que vai ocorrer comigo. Provavelmente, sim. O fato é que a tal “vida boa” – que parte das pessoas que conheço jura que teve e que associa à infância – como nas palavras do poeta pernambucano, “para mim, nunca veio”. Ainda assim, gosto de relembrar esses acontecimentos e de narrá-los ao meu neto, pois minhas trapalhadas, e as tantas e desastradas travessuras de menino, lhe arrancam deliciosas gargalhadas de incredulidade. E acabo rindo com ele.


* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos), “Cronos & Narciso” (crônicas), “Antologia” – maio de 1991 a maio de 1996. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 49 (edição comemorativa do 40º aniversário), página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio de 2001. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 53, página 54. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk 

Um comentário:

  1. As quatro histórias já estiveram aqui, só não sei se foi o mesmo texto, ou se este foi recriado. Caso nascesse de uns trinta anos para cá, certamente teriam suspeitado de que tivesse o TDAH, Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade. Estas pessoas muito sujeitas a acidentes graves, especialmente na infância.

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