quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Maurício de Moraes


* Por Pedro J. Bondaczuk


Os amigos também brigam. E como! Isto é o que sempre digo ao meu filho Alexei, quando temos alguma desavença e não quero que ele guarde rancor por eu ter, eventualmente, sido rude ou ditatorial. Amizades onde não existam controvérsias têm algo de errado. Um dos pretensos amigos está se impondo sobre o outro. Por mais identidade de idéias e de princípios que duas pessoas tenham, elas nunca irão concordar em tudo. Sempre existirá alguma espécie de divergência. Claro que estas devem ser manifestadas, porém em alto nível. Um dos amigos que mais prezei em Campinas, dos tantos que a vida me presenteou, tinha mais diferenças do que identidades comigo. Foi o saudoso e inigualável Maurício de Moraes.

Conhecemo-nos no "Correio Popular", onde fomos companheiros de trabalho por oito anos, até que esse brilhante poeta e jornalista fosse demitido da empresa. Nossas brigas das sextas-feiras tornaram-se conhecidíssimas em todo o jornal e até viraram folclore. Havia sempre uma expectativa sobre a que horas começariam e qual seria o seu detonador. Mas a discussão era tão certa quanto o nascimento e o pôr do sol. Para os que não conheciam a mútua admiração que tínhamos um pelo outro, ficava a impressão de que éramos inconciliáveis inimigos. Nada mais falso. Na verdade, na ocasião, o Maurício era um dos raros amigos que eu tinha. E ele sabia disso. Como eu também tinha certeza da recíproca.

Poucos sabiam lidar com o meu jeitão "marrudo" e brusco. Eu era uma pessoa temperamental, que mudava de humor a todo o instante e repentinamente, dando respostas atravessadas a quem quer que me contrariasse ou aborrecesse, indiferente quanto à sua posição hierárquica na empresa. A maioria dos colegas me evitava. Claro que sempre havia exceções. Eram os casos do Hermano Pini, do Carlos Tôntoli (Carlitão), do Ismael Pfeiffer e de mais duas ou três pessoas. Quem me conhece hoje, é incapaz de acreditar que já fui uma pessoa de poucas amizades e menos conversa ainda. O tempo --- ah! o tempo! --- encarregou-se de acabar com minha auto-suficiência. Muitos achavam, erroneamente, que se tratava de arrogância.

O Maurício, em certa ocasião, disse uma frase, do escritor Júlio Diniz, que nunca mais esqueci: "Há aparências de dureza que ocultam tesouros de sensibilidade e de afeto". Mesmo tendo temperamento tão diferente do meu, senti que ele me entendia, embora (reitero) divergíssemos em praticamente tudo. Tínhamos linha política diferente, gostos antagônicos em literatura (à exceção de poesia), e postura diversa em relação à vida. Todavia, em vez de hipocritamente um apoiar da boca para fora as opiniões do outro, tínhamos coragem de discutir nossas divergências, muitas vezes até aos berros.

Ambos, contudo, nos admirávamos mutuamente e sabíamos disso. Tanto que, quando escrevi uma página especial no jornal abordando as minhas preferências literárias, não tive dúvidas de relacionar o Maurício entre meus escritores preferidos. Era um poeta de imensa sensibilidade e delicadeza. Como pessoa, era tudo o que eu sempre quis ser e não consegui. Alegre, jovial e desligado dos problemas, era um eterno meninão, que se esqueceu de crescer. Mas guardava a pureza, a espontaneidade e a inocência de uma criança. Apesar de procurar passar aos colegas uma impressão contrária, não tinha qualquer malícia.

Dele poderia dizer (parodiando Franz Kafka e rebatendo sua citação de Júlio Diniz a meu respeito): "A pessoa que conserva sua capacidade de ver a beleza, jamais envelhece". Meu amigo era assim. Era jovem aos setenta e tantos anos de idade. Tinha um radar no cérebro, que captava tudo o que era belo. E registrava em versos perfeitos, espontâneos, musicais, fantásticos.

Foi o Maurício que se empenhou, ao lado de outro saudoso amigo querido, o Mauro Sampaio, para o meu ingresso na Academia Campinense de Letras. Foi dele o discurso de recepção, quando tomei posse da minha cadeira. Portanto, sua admiração por mim não se restringia a palavras. Aliás, estas, há algum tempo, não eram exatamente de elogios, quando das nossas brigas semanais. Isto demonstrou-me que o importante na vida não é o que se diz, mas o que se faz. Há tanta gente que me elogia na presença e que na ausência... Bem, nem é bom falar. Pândegos, é o que são.

Um dia "vinguei-me" do Maurício. Fiz meu amigo chorar. Foi quando dei a aula inaugural na Faculdade de Filosofia de Ouro Fino, sua cidade natal, em um evento que ele acertou. Tratou-se do meu melhor desempenho como conferencista. Coloquei a alma, o coração e a mente na preleção. Quando esta terminou, sob aplausos de pé dos mais de mil alunos, professores, funcionários e pais presentes, olhei para o Maurício, na mesa coordenadora da aula inaugural, e este chorava como criança (que sempre foi, no seu sentido mais positivo). Era de pura emoção. Como não ter amizade por uma pessoa tão preciosa?!? Quanta saudade você me deixou, insubstituível amigão!!!


* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos), “Cronos & Narciso” (crônicas), “Antologia” – maio de 1991 a maio de 1996. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 49 (edição comemorativa do 40º aniversário), página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio de 2001. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 53, página 54. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk 



Um comentário:

  1. Fiquei aqui imaginando as minhas diferenças com uma amiga que conheci há 48 anos. O curioso é que, sempre nos divergimos, mas não brigávamos, e de uns poucos anos para cá, a toda hora discutimos calorosamente. A velhice nos tornou piores.

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