domingo, 22 de fevereiro de 2015

De mal em mal, mal-entendidos...


* Por Lêda Selma


Novamente, ela, a moça do norte – “Nortista, não, nortense, é mais chique!”, diz, com um sorriso nacarado, sorriso de lua cheia, espalhado no rosto –. Morena-tamarindo, de boca suculenta, lábios vermelhamente embatonzados, olhos falantes e sempre crispados em olhos quase sempre perplexos. É a moça do norte, de franqueza escrachada e nocauteante, com a palavra afiada sempre em riste, que não melhorou o português, mas é com ele que diz o que quer, sem censura ou subterfúgios, mesmo a quem não deseja ouvi-la; a moça que desejava “tê um fio”, mas que o apelo da maternidade não foi capaz de liberar o desejo da carne, exigente que era. Assim, o filho nunca veio. Tampouco, a desilusão.

Um dia, a moça do norte, já quarentona, resolveu ir à escola. E foi aplaudida por todos. Lá, aprendeu um pouco do que devia, muito do que não queria e bastante do que não precisava. Apesar disso, seu mundo, até então, do tamanho de um minúsculo quarto de empregada, ganhou novas dimensões, cresceu, cresceu, virou às avessas, e sugou seu mundinho fechado, sem varandas ou quintais, um mundinho cheio de sombras e muralhas, cheirando a mofo.  Nele, não mais cabia. E, pelas janelas escancaradas à sua frente, vaticinou novas trilhas e um sol que não conhecia. E caminhou, voando. Daí para o curso técnico em enfermagem, um pulo, aliás, um salto e tanto.

O estágio pelos hospitais da vida mostrou-lhe dificuldades não imaginadas. Ai, meu Deus, e o pobre do português, já por ela tão maltratado? Nossa, ficou pior que jogador de futebol contundido severamente: manco e troncho. Porém, a moça do norte, cheia de propriedade, sentia-se, dia a dia, mais letrada e, mais ainda, doutorizada. Para orgulho da família que, aqui e acolá, reverenciava tal ascensão, respaldando-lhe os conhecimentos paramédicos, a competência e encantando-se com suas façanhas cantadas e requentadas a toda plateia atenta:
– Hoje, lá no Inspital Genial de Goiânia, um véi diabrético chilicou depois de ter um troço. Ah! vi logo que devia ser enemia, claro! Oceis diabréticos não têm o sangue raleado? Então...

Nesse “oceis”, estava eu incluída, naturalmente. Bem, de pronto, corrigi o nome do nosocômio, trocando “Inspital Genial” por Hospital Geral. A “enemia” e o “diabrético”, tentei remendar, acho, em vão. E que o padroeiro dos idiomas mutilados não se distraísse tanto, supliquei. Se possível, até um plantão extra, amém! E que viesse o próximo estágio...
– Sabe o véi diabrético? Pois é, vazou!
– Fugiu do hospital, ou recebeu alta!
– Que o quê, morreu mesmo! Alta eterna.

Aparvalhei-me com tamanha singeleza ao falar de algo sério e triste. Ela nem se abalou. E filosofou convicta:
– Se tamo aqui por um favor, um empréstimo de Deus, já sabemo que não é pra sempre...

Preferi silenciar-me ante tão imperativa e lógica postura que, óbvio!, não se conecta à minha, sempre revestida de muita emoção. Contudo, como as diferenças alimentam as relações, que assim seja, conformei-me.

Não tardou muito, a moça do norte, autoconsiderada letrada e doutorizada, admirada pela família, pelos amigos, vizinhos e adjacentes, após mais um estágio...
– Ih! hoje a doenceira foi lá no Sanitário... que nome mais esquisito, desconjuro!
– Não seria Sanatório, criatura? – interferi.
– Parece que é isso mesmo. Pois é, tinha um doente na UTI, muito grave, e, logo que estatelei os olhos nele, percebi a morte lá, sentada bem do seu lado. A gente sente quando a fatídica ronda o doente e, por isso, falei bem claro pro doutor:
– Acho que esse morrebundo tá precisando é de um médico otorr...  um médico de ouvido.
– De ouvido? O problema dele é no pulmão.
– Pode até ser, mas que ele tá surdo, tá: Deus chama, chama, chama e ele não escuta, ora!

* Poetisa e cronista, licenciada em Letras Vernáculas, imortal da Academia Goiana de Letras, baiana de Urandi, autora de “Das sendas travessia”, “Erro Médico”, “A dor da gente”, “Pois é filho”, “Fuligens do sonho”, “Migrações das Horas”, “Nem te conto”, “À deriva” e “Hum sei não!”, entre outros.


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