quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Tarde demais 22 – O atendimento


* Por Gustavo do Carmo


A sirene urrava pela cidade. A ambulância do SAMU costurava o trânsito em busca de espaço na pista de rolamento para chegar o mais rápido possível à sua chamada de emergência. Saíra do Centro da cidade, na hora do rush, em direção a um bairro do subúrbio.  A viagem, que normalmente é feita em  meia hora, demorou duas.

O solicitante do socorro, um rapaz de uns trinta anos, estava na porta do velho prédio baixo onde morava, desde que nasceu, com a sua mãe, que era quem estava passando mal. Seu olhar era tenso, apreensivo, vendo a ambulância, finalmente, entrar na rua de pouco movimento.

A van, branca com detalhes vermelhos e o enorme número 192 – o telefone da emergência - gravado na lateral, estacionou no meio-fio da calçada. Desceram, dos bancos da frente, uma bela moça de branco (morena de olhos e verdes com corpo magro) e um casal de farda caqui. O homem era mulato e musculoso. A mulher gorda e masculinizada, que em seguida pegou uma prancha de madeira e coletes no baú. Nas mangas do uniforme de todos, inclusive da bela moça de branco, que devia ser a médica-chefe do atendimento, via-se, em cada braço, uma bandeira do Brasil e outra do estado.

A médica bonita se manifesta. O olhar apreensivo do rapaz solicitante se torna repreensivo e também furioso.
— Recebemos um chamado de atendimento de emergência. É aqui?
— Agora que vocês vieram? Respondeu o rapaz.
— Senhor, o chamado é aqui? Ela insistiu.
— O que vocês acham?

O único homem da equipe sai em defesa da moça e intimida:
— Olha aqui, desrespeitar funcionário público no exercício da sua função é crime, viu? 
— Ah! Negar atendimento não é?
— Nós recebemos muitos trotes. Pela sua reação percebo que você é um desses autores. Respondeu a mulher masculinizada, com olhar de julgamento para o rapaz.
— Ah, tá! Fui eu que passei trote? Minha mãe estava morrendo, passou cinco horas sem socorro, sem vocês sequer aparecerem e eu que passei trote? Bradou.
— O senhor se acalme, por favor! Senão vamos chamar a polícia para te prender por desacato. Ameaçou a mulher masculinizada.
— Eu vou me acalmar sim! Porque agora é tarde demais!  A minha mãe morreu na semana passada! Estou vindo da missa de sétimo dia dela, que não resistiu após a demora do atendimento, e vocês me aparecem uma semana depois???? Devem ter tido uma fila enorme de trotes para atender!
— O Serviço de Atendimento Móvel de Urgência pede sinceras desculpas pela demora no atendimento e lamenta a morte da sua querida mãe. Mas você poderia ter ligado para cancelar a chamada. Esclareceu a médica bonita.
— LIGAR??? FOI UM CUSTO LIGAR PRA VOCÊS PARA SOLICITAR O ATENDIMENTO, VOCÊS NÂO VIERAM, A MINHA MÃE MORREU E NO DESESPERO QUE EU ESTAVA VOCÊS ACHAM QUE EU IA ATURAR DUAS HORAS DE ATENDIMENTO ELETRÔNICO!
— Senhor, se acalme! Senão vamos chamar a polícia para prendê-lo. Já avisamos. Alertou o homem do SAMU, já impaciente.
— EU ESTAVA SOZINHO COM A MINHA MÃE QUANDO ELA PASSOU MAL E NENHUM TAXISTA QUIS LEVÁ-LA PARA O HOSPITAL PORQUE JÁ VIU QUE ELA JÁ ESTAVA MORTA! MAS AINDA ESTAVA COM UM POUCO DE VIDA! MINHA IRMÃ CHEGOU MAIS RÁPIDO QUE VOCÊS DEPOIS QUE EU A CHAMEI, SEUS INCOMPETENTES!!!

Enquanto o rapaz gritava, já aos prantos, a médica bonita ligava para a polícia. Em cinco minutos apareceu uma patrulha que levou algemado o desolado jornalista desempregado, de cabelos grandes despenteados, cueca samba-canção e chinelos, para a delegacia.

* Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos”.
Seu  blog, “Tudo cultural” - www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores



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