sábado, 31 de janeiro de 2015

Carne seca assada na brasa


* Por Urda Alice Klueger


(Para Minervina Klueger, minha mãe)



Há pouco, andando sob a chuva com a minha sombrinha nova, de xadrez azul e branco, eu senti como que um frêmito, e sussurrei para o meu cachorro, pois se a gente falar alto, numa hora destas, uma pessoa adulta pode ver e achar que enlouquecemos:
- Sabes? Era bem assim quando eu era criança: chovia!

Então pensei mais um pouco e lembrei que também fazia sol, lá na minha primeira infância. Claro que nunca choveu sempre, mas o que eu estava sentindo era a revivência, dentro de mim, das lembranças mais remotas da minha vida, que eram dias de chuva na nossa casinha pintada de amarelo-creme, lá na Rua Antônio Zendron, no bairro Garcia, em Blumenau, no mesmo lugar onde hoje se situa a bela casa da minha prima Herta Klueger Klock. Uma ou outra vez eu já falei de pedaços dessas lembranças, mas agora vou contar como elas me sacudiram hoje junto com aquele frêmito.


Sei hoje que tinha três anos e, talvez como hoje, fosse fim de inverno ou começo de primavera. Na nossa cozinha havia um fogão de tijolos com fogo à lenha, e no vão sob ele dois gatos se aqueciam do frio que vinha do grande mundo lá de fora: um era cinza e não lembro seu nome; o outro tinha uma cor laranja e se chamava Mimi, e ambos olhavam para mim, se eu me aproximava demais, e faziam assim:
- Fisssss – me avisando de que não eram amistosos, embora fossem, com a maior docilidade, para o colo da minha mãe. E ela me avisava pra que não me aproximasse deles, pois poderiam me arranhar, mas sempre achei, depois que cresci, que ela estava apenas querendo garantir a minha integridade física, pois sempre me dei tão bem com os animaizinhos!

Ficava ali, portanto, olhando para a vivacidade daquele fogo cujo calor eu compartilhava com aqueles gatos, e lá fora chovia, chovia tristemente, parecia que interminavelmente, e as lembranças mais remotas que tenho são quase sempre ligadas a dias de chuva. Lembro com muita clareza de como era bom o calor daquele fogo, e de como ficava fascinada com o balé das chamas nas achas de lenha seca, de como aquelas línguas avermelhadas, às vezes amarelas e até azuis, lambiam a lenha e revoluteavam no seu espaço no fogão, e de como poderia ficar ali para sempre, espiando sua dança incansável, que consumia a madeira com estalidos aconchegantes, e de como era fascinante, também, ver aquela lenha se transformar em brasas!

Minha mãe estava à espera das brasas, pois havia uma iguaria que ela amava sobretudo, embora, naquele tempo, tal iguaria não me agradasse: a carne seca assada na brasa com pirão branco! Mas embora eu então não gostasse daquele sabor (preferia as cocadas e os sonhos, sempre! E as tortas de nata com ameixa-preta que a minha prima Sofia Klueger fazia!), era fascinante ficar ali vendo a inusitada atividade de minha mãe: ela espetava um naco de carne seca numa varinha que decerto cortara no quintal e ficava a segurar a carne sobre as brasas, virando-a e revirando-a até dizer que estava boa, pois eu ainda era pequena demais para entender dessa coisa de assamentos.

Com a água que fervia na grande chaleira de ferro, em seguida, ela fazia um pirãozinho d’água num prato, colocava a carne em cima, e então suspirava de felicidade! Antes de comer, ela sempre me perguntava se eu queria também, mas eu nunca queria – já disse que não gostava daquilo. Estava acostumada a outras comidas, e acho que a minha mãe fazia aquelas iguarias de que tanto gostava somente em ocasiões em que estava sozinha comigo, pois a sociedade circundante haveria de criticá-la por aqueles hábitos alimentares que ela trouxera da sua Nova Descoberta, terra a mais de 100 km dali, não muito longe do mar. Penso agora que aquele, certamente, não era um hábito alimentar que nenhum europeu trouxera um dia para as terras do Brasil: posso praticamente dizer com segurança que aquela carne seca assada na brasa com pirão de farinha de mandioca tinha suas origens nos povos originários que muuuuuito antes dos europeus habitaram esta nossa terra. De alguma forma, ela entrara na tradição alimentar da minha mãe, tradição que ela cultivava extemporaneamente, quando só havia ela, eu e os gatos na casa.

Minha mãe, nessa época, tinha 33 anos e provavelmente estava grávida. E chovia muito naqueles dias, e tais chuvas, hoje, são como um frêmito dentro de mim.

* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR, autora de mais três dezenas de livros, entre os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e “No tempo das tangerinas” (12 edições).



Um comentário:

  1. Ah, que delícia de lembranças, Urda. Não tenho memórias tão remotas. Alguma coisa me vem dos três anos, mas pouco e misturado, sem essa nitidez que lhe é permitida visitar.

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