domingo, 18 de janeiro de 2015

Astolfo e Ana – II

* Por Edmundo Pacheco


E foi uma das poucas vezes que viu e ouviu seu pai. Quase sempre ele estava entrando ou saindo de casa, sempre muito esbaforido, como se fosse tirar alguém da forca. E às vezes ia mesmo. Dom Fernando era uma espécie de conselheiro do rei. Uma atribuição que vinha muito mais da amizade, que da legalidade. E com isso, além de viver uma vida atribulada, Dom Fernando ainda era obrigado, vez ou outra, apartar brigas, acertar arestas políticas, intermediar confusões.

E a vida seguiu sem mistérios, até o dia do aparecimento daquele anjo chamado dona Ana de Vasconcelos e Almeida. Então, se não houve mudanças na vida, a cabeça de Tofinho desvirtuo-se. Nos primeiros dias, ficou perdido entre vestir os calçolões de saco de aniagem, esquecer as maluquices da casa grande, a granfinagem e as roupas com cheiro de água de colônia e voltar ao mafuá das pretas, onde reinara desde os primeiros de seus dias. Depois, resolveu por se empertigar, assumir que era realmente o filho único e único herdeiro de Dom Fernando Algraves das Neves Filho, um fidalgo dos mais renomados da corte, amigo pessoal e conselheiro do Rei, milionário, com terras espalhadas por brasís que ninguém conhecia.

A dúvida durou até o dia em que viu don'Ana à janela da casa, mirando a rua. Ao longe passavam alguns rapazes, por certo nem de longe com a beleza de Tofinho, mas com as roupas e o empertigo que ele até então não assumira. E foi o que, finalmente, fê-lo assumir a identidade que seu pai desejava. Na manhã seguinte levantou cedo, como nunca fizera, banhou-se, barbeou-se e vestiu o melhor terno de casimira inglesa, confeccionado pra ele sob medida pelo alfaiate real, antes de descer para o café.

Sua mãe quase perdeu o fôlego quando viu Tofinho descendo a escadaria, amparado pelo pajem. Era um sonho se tornando realidade. Agora ele não era mais o Tofinho, mas Dom Astolfo Algraves das Neves.

Mas quis o destino (se é que o destino quer alguma coisa) que mesmo perdidamente apaixonado pela bela rapariga e, portanto, mais que motivado, Dom Fernando Algraves das Neves, ou o Tofinho, ou mais intimamente  o “Finho”, amigo íntimo das bocetas mais fedidas da senzala, não se desse bem nos estudos. Não conseguiu aprender mais que mais dúzia de letras e sequer chegou a aprender mais que rabiscar o próprio nome.
- Um verdadeiro fracasso – comentaria um decepcionadíssimo Dom Fernando Algraves das Neves Filho, entre os amigos da corte.
- Dona Maria de Alcantara Algraves das Neves não teve a boa graça de me dar um filho homem. E olha que tentamos por 5 ou 6 vezes. Criamos três, mas sem sucesso. Só fêmeas. O único macho fui conseguir mestiço, com uma preta de cria da casa. Punha esperanças que vingasse, mas qual nada, qual nada... – lamentava-se, amparados por colegas que fingiam se preocupar e até entender o desolo do colega.

Alguns até entendiam, mas preferiam não se alongar nas explicações, para não ferir ainda mais o pobre e bom Dom Fernando. Mas era realmente fácil de entender. Como pudera Dom Fernando, um fidalgo da corte, advogado de causas nobres e inteligência superior, esperar que um garoto mestiço, um filho de uma preta, ainda que também mestiça (e mui bonita e boa, diga-se) pudesse ter a capacidade de ser civilizado? Quanto mais, pretender ser sucessor de pessoa tão nobre.
- Pobre Dom Fernando, a falta de um filho faz vingar as ilusões... – riam-se aos cochichos, os verdadeiros amigos, que se importavam com a situação.

Sem sucesso nos estudos e ainda pretendendo conquistar a notoriedade necessária para ser merecedor da mão (e, principalmente, de partes mais interessantes) de Don’Ana, Tofinho tomou uma resolução que seria fatal. Iria ser desbravador. Um bandeirante.

Se embrenharia pela mata atrás de ouro, prata e pedras, desvendaria mistérios, desenharia mapas, conquistaria terras e faria escravos e, quando voltasse não mais precisaria quebrar a cabeça em chatérrimas aulas de leitura que nunca lhe deram mais que dor de cabeça e sono. Além de conquistar a notoriedade necessária, traria ainda riqueza e honra. E seria a chave para abrir as alvíssimas pernas da donzela amada.

E foi assim que, numa manhã ensolarada de maio, no ano da graça de nosso senhor de 1744, Dom Fernando Algraves das Neves, Tofinho, o “Finho”, partiu da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, levando consigo as esperanças secretas da Don’Ana, suas certezas e incertezas pessoais, duas parelhas de mulos carregados com umas tralhas de acampanhar e víveres, dois mateiros de confiança designados por Dom Fernando, e uma meia dúzia de escravos. Todos, devidamente guiados pelo negro DeSilva, um ex-escravo sem nome, ganho por Dom Astolfo num jogo de cartas, de um certo senhor português de nome Manuel Pacheco de Silva, pessoa de muito bom coração e trato, mas pouquíssima habilidade no manuseio das cartas.

O negro, enorme, acabou carinhosamente apelidado com sobrenome de seu ex-dono. Primeiramente seria nominado “Pacheco”, mas não pareceu o bom negro ser merecedor de tão esquisito nome, próprio para designar patetas.

Chegou-se ao Silva. Ou “DeSilva”, na forma da apresentação do Pacheco das cartas. Sempre pronunciado com o éle arrastado, no bom sotaque português e dito assim: DeSilva, numa golfada só, e não separando-se o “de” do “Silva”, na indicação do adjunto restritivo, que originalmente indicava a propriedade. Era só DeSilva, um nome, uma palavra e, mais que ninguém, provou ser um grande amigo e um protetor de Astolfo. E não mais o escravo “do Silva”, como dantes.

Amigo e protetor, leal até a última gota de sangue. Pelo menos até a noite daquele cinco de janeiro quando, com os ossos molhados e as carnes esfoladas, os dez homens e dois mulos chegaram a uma clareira da mata, já pra mais de 600 quilômetros a oeste dos muros da Vila de  São Paulo de Piratininga. Seiscentos quilômetros caminhados entre trilhas existentes e inexistentes, árvores gigantes, rios e riachos, bichos e mais bichos, mas sem um nada de ouro ou qualquer outra coisa de valor.

Desanimado com a incursão que já prometia fracassar e, com a mente a cada segundo mais ligada à paixão quase secreta, pela meia prima de pele rosada, Astolfo não percebeu que a revolta vinha tomando conta dos homens que o seguiam. E cresceu quando, depois de passarem o grande rio que dividia a província de São Paulo, espalhou-se a notícia de que, sem o sucesso esperado, Dom Astolfo iria levar os homens para serem vendidos aos espanhóis, que se tinha notícias, dominavam a região da divisa numa vila de nome Guaíra, assentada às margens duma garganta de rio, de beleza paradisíaca.

CONTINUA

*Jornalista, ex-editor-chefe da TV Guairaca (afiliada Globo) Guarapuava, PR


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