sábado, 31 de janeiro de 2015

A batalha de Humaitá


* Por Artur Jaceguai


A noite de 18 de fevereiro cerrara-se sem alterar a limpidez da atmosfera do dia abrasador que a precedera; o brilho das estrelas, porém, não penetrava nas lôbregas sombras das alterosas matas por entre as quais deslizava silenciosamente a massa líquida do rio. No porto Eliziário, logo ao escurecer, os monitores manobraram para atracar aos seus matalotes, na formatura ordenada. Concluída a faina, formadas as guarnições por quartos, os comandantes ditaram suas ordens sobre postos de combate e sobre as eventualidades possíveis na ação que se ia empenhar. O comandante do Barroso terminou as últimas disposições, dirigindo aos seus oficiais e marinheiros as seguintes palavras: - “Agora, avante, meus bravos! Em Curupaiti, de dia, apenas recebemos cinco balas, quando os outros receberam cinqüenta; pois bem, em Humaitá, de noite, arranjaremos isso por menos. Confiai em vosso comandante como ele confia em vós.”

Às 11 horas a descarga estridente do vapor dos seis encouraçados da divisão avançada indicava aos Paraguaios vigilantes na margem do rio alguma coisa de extraordinário. Meia hora depois o “clank-clank” das amarras denunciava que os navios se iam mover, e, logo, um foguete, repetido de piquete em piquete até Humaitá, seguido de outro sinal luminoso mais intenso, deu aos nossos marinheiros a certeza de que não teriam a vantagem de surpreender o inimigo. Tanto melhor, houve quem dissesse, não passaremos às escuras.

À meia-noite, em ponto, o Barroso e o Rio Grande já seguiam avante, a meia-força, por não terem ainda desferrado os demais. À uma hora e trinta estava o Barroso pelos través do navio almirante, mas não lobrigavam ainda outros vultos pela sua popa. O almirante ordenou-lhe parasse e aguardasse os seus companheiros. Às duas horas e quarenta e cinco minutos, como estes ainda não aparecessem e a lua nascente já mostrasse a sua claridade, por trás da mata do Chaco, o comandante do Barroso mandou por um oficial cientificar ao almirante que, retardados os seus companheiros, estava no entanto pronto a avançar, com a máxima pressão nas caldeiras dos dois navios. Nesse entrementes, distinguiu-se uma luz movendo-se sobre a água; devia ser um dos retardatários.

O Barroso pôs-se logo em movimento, sem parar sequer para receber o oficial que voltava da capitânea, o qual dificilmente conseguiu atracar ao costado mediante um cabo que se lançou. O almirante reiterava a ordem de esperar, mas o Barroso não mais se deteve e investiu o passo só com o Rio Grande. Eram 3 horas. Os paraguaios contavam provavelmente que, a realizar-se o ataque, os navios se apresentassem a meio do rio; o Barroso, porém, prevalecendo-se da grande enchente, surgiu-lhes perto da Ponta de Pedras de onde fez rumo a se manter tanto quanto possível próximo ao barranco. Não tardou um minuto o fogo rolante de todas as baterias sobre os dois navios, sem demora respondido pela esquadra de proteção. A primeira bala que feriu o Barroso, na face de vante da casamata, trazia tamanha energia acumulada, produziu choque tão violento, que se diria ter sido lançada com a intenção de fazer o navio estacar. O homem do leme, atordoado, abandonou a roda de governo por alguns segundos; a trepidação da muralha encouraçada em que se deu o impacto do projétil foi tão forte, que causou uma contusão no braço que o comandante tinha apoiado no batente da portinhola de vante, por onde dirigia o navio com o prático. Em certo sentido, a metáfora favorita das ordens do dia do almirante - das abóbadas de balas - podia aplicar-se aos dois navios exploradores, porque eles prosseguiam incólumes na sua rota, cruzando-se por cima deles toneladas de projéteis arremessados das baterias inimigas e dos encouraçados que os canhoneavam.

No meio do troar de mais de 300 canhões em ação, ouvia-se de bordo, distintamente, o estrépito das balas que devastavam a floresta do Chaco. É possível que o clarão das gigantescas fogueiras, que, por encanto, se acenderam na margem oposta para iluminarem o passo, e bem assim os reflexos do fogo que pareciam abrasar a superfície das águas, tivessem prejudicado a visão dos artilheiros paraguaios, de modo a poder-se explicar tão grandes erros de pontaria. O que é certo é que, depois de quase extintas as fogueiras, com uma luz mais suave, eles acertaram a valer nos navios que passavam mais tarde.

No trajeto do Barroso e Rio Grande, desde a altura da Ponta de Pedras até o canal junto do barranco, apenas seis balas tocaram os dois navios.

Em menos de 15 minutos estavam debaixo da bateria Londres, à pequena distância do barranco. Foi o momento crítico do trajeto. Chegados ao ponto em que deviam manobrar para contornar o barranco, o fio mais intenso da corrente apanhou-lhes a proa e a ação do leme tornou-se impotente para vencer a inércia da dupla massa líquida impelida sobre a margem. Continuando a seguir avante, em poucos minutos encalhariam de proa; parando ou andando para trás iriam ensacar-se nas revessas da enseada, formada pela Ponta de Pedras, donde dificilmente poderiam sair; mas, graças ao tubo acústico, disposto entre os dois navios, o comandante do Barroso pôde manobrar com a prontidão que o caso exigia, mandando parar e logo funcionar para trás as máquinas do monitor - as do seu navio sempre trabalhando para diante, a toda a força, conseguindo assim, sem se imobilizar um só instante, aproar à correnteza e em seguida fazer rumo normal ao meio das cadeias.

Prosseguia o Barroso com extraordinária velocidade que o seu hábil maquinista sabia imprimir-lhe em tais ocasiões e já estava próximo às correntes quando uma bomba de grosso calibre, explodindo ao cair n’água entre a proa do monitor e o seu costado, levantou imensa coluna líquida que alagou o convés de ambos. Só o comandante e o prático Echebarne, que tinham olhos cravados para a frente, atribuíram à sua verdadeira causa aquele espetaculoso efeito; para os demais tripulantes fora um torpedo, e, no pânico de que muitos se possuíram, indiferentes às balas, surdiam das escotilhas acreditando que os navios se iam submergir. O valente Antônio Joaquim saiu da torre do seu monitor para a tolda pela estreita portinhola do canhão, o que ele mesmo dizia nunca ter antes imaginado fosse possível para um homem da sua corpulência.

Alguns minutos mais e o foguete lançado do Barroso indicava que ele já havia transposto as cadeias, e que não havia em Humaitá obstáculos insuperáveis para a divisão avançada. Eram três horas e trinta minutos da manhã. Parou o Barroso dois quilômetros acima das cadeias e ali esperou os outros navios. Às quatro horas e 45 minutos surgiu o Baía. O comandante do Barroso não teve certamente em toda a sua vida um momento mais feliz do que aquele em que abraçado pelos seus dedicados amigos Echebarne e Antônio Joaquim foi o objeto de aclamações deliberantes dos seus oficiais e marinheiros...

(Reminiscências da Guerra do Paraguai, 1935.)


* Almirante e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras

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