sábado, 27 de dezembro de 2014

Império e sua metáfora

* Por Jair A. Alves


Que relação existe entre Império e a peça Feliz Ano Velho? Ambas falam do sumiço de corpos e focam a Liberdade de Imprensa e Expressão. Por ser esta telenovela a programação de maior audiência da tevê brasileira, vale uma reflexão mais apurada do que ela pode representar como “espelho” da realidade atual. Nesse contexto, dois “personagens” inevitavelmente merecem atenção: O autor, Aguinaldo Silva, e o próprio espectador que, de segunda a sábado, entrega o melhor de sua imaginação para “viajar” na trama rocambolesca, recheada de excelentes atuações. Quem é, verdadeiramente, o protagonista da novela das nove? Em tese, seria o “José Alfredo” (o ator Alexandre Nero), caracterizado como um herói medieval remasterizado pelas invenções da modernidade. Usar este aventureiro como herói romântico, no entanto, não passa de um “truque” que o autor tem para driblar a censura política dos tempos atuais. No que consiste esta “censura? Eis aqui a questão!!!

A censura não passa de um “acordo de cavalheiros”, até o próximo escândalo de corrupção. Quem participa deste “acordão”? A censura ou, o que não pode ser citado, foi costurada desde Tancredo Neves e a Nova República, inclusive com a participação passiva do próprio autor privilegiando “os efeitos”, em detrimento da leitura da realidade imediata. É como se aplicassem, com rigor, a regra “perco um amigo, mas não a piada”. Este primarismo, característico da subliteratura inventando coisas que o verossímil não comporta, criou um “beco sem saída” para a dramaturgia nacional. Por esta razão perdeu espaço para programas como “Casseta e Planeta”, além dos horrorosos “Pânico” e “CQC”. Esse é o tema da nossa conversa.

Na visão de Doc Comparato, criador desta “solução mágica” e parceiro inseparável de Aguinaldo Silva em seus primeiros trabalhos para a tevê, dizia algo parecido com: “em dramaturgia o mais importante são seus efeitos cênicos”. Tão equivocado estava Doc que sumiu do cenário nacional. Sem contar que sua visão estreita de dramaturgia se restringe a telenovelas e definitivamente não é só isso, como sabemos.

Sem mais delongas introduzo aqui a tese de que a telenovela “Império” tem relação direta com a peça teatral “Feliz Ano Velho” (1983) que estreou, há pouco mais de trinta anos, servindo de ponto de convergência, um resumo da ópera nos tempos de então, numa livre adaptação de Alcides Nogueira para o teatro, do livro de Marcelo Rubens Paiva. A montagem se transformou à época num fenômeno de público pelo Brasil afora, viajando por praticamente todas as capitais brasileiras, aliando arte e diversão e política de novos rumos para a juventude de um Brasil que saia do regime militar. O grupo “Legião Urbana” é um destes exemplos, o que não é pouco.

A importância de Feliz Ano Velho na época se revelou até pelo que não deu certo. O mesmo texto levado ao cinema com outro enfoque não obteve a menor repercussão, apesar de o autor do livro já ter se constituído numa celebridade. Montada na Argentina, foi quase um fracasso. Prova que o elenco, formado no Brasil, não se desligava do que aqui acontecia (nas ruas, corações e mentes). Era o tempo da “Campanha pelas Diretas”. Na estreia nacional, na cidade de Sorocaba, lá estava Doc Comparato querendo “tirar a azeitona da empada”. Polemizando com Adilson Barros (que interpretava Rubens Paiva), a respeito do excesso de “teatro verdade”, na sua visão de “novo teórico das artes dramatúrgicas brasileiras”. O mal estar aconteceu no jantar de confraternização pós espetáculo. Na mesa, além desse que “vos fala”, o dramaturgo Fauze Arap e a “rinha” não durou mais do que os primeiros copos de cerveja. O tempo demonstrou o quanto o “teórico” estava equivocado.

Nos tempos atuais de Império, com elevadíssimo nível de audiência, o que salva na escrita de Aguinaldo Silva é o seu talento. Inegavelmente, supera “certos obstáculos” com inovações que não sei o que os demais “autores de novelas” conseguem captar e praticar. Uma das descobertas de Aguinaldo é resolver logo conflitos menores, no máximo em dois ou três capítulos. Raramente estes pequenos conflitos se estendem por mais de uma semana. A maioria dos pequenos personagens está sempre a serviço de uma “trama” mais complexa e absolutamente previsível. Nem por isso deixa de ser fascinante. O truque do Autor disfarça tão bem ao ponto do espectador não perceber que ele faz parte do enredo (como personagem invisível). Ouso dizer que Aguinaldo Silva foi o profissional que melhor entendeu a interação com público, através das “pesquisas de rua”, hoje tão comuns nas equipes de apoio ás telenovelas. Um outro truque é usar os “fofoqueiros” que vazam pela Internet os lances dos próximos capítulos, ás vezes com semanas de antecedência. Os “furadores de notícia” devem se achar o máximo, mas estão sendo usados pelo Autor, não tenho dúvidas. Esta é a melhor parte de tudo, como veremos a seguir.

Quanto á relação com Feliz Ano Velho, basta dizer que dois dos mais importantes criadores daquele fenômeno teatral estão em cena diariamente em Império. Falo de Paulo Betti, diretor de “FAV” e Lilia Cabral, respectivamente, “Teo Pereira” e “Maria Marta”, a meu ver, os verdadeiros protagonistas da telenovela. O “jogo” é tão fascinante que Teo Pereira passa uma noite detido entre marginais, numa eletrizante noite de botar inveja para “Geni”. De quebra, revela Paulo Betti “gay”. Já “Maria Marta” demonstra como o ser humano é perverso, ao mesmo tempo em que emociona os que assistem, em lances que lembram as mais belas passagens da tragédia grega.

Neste momento rivaliza com outra atriz de Feliz Ano Velho: Denise del Vecchio (atualmente desmoronando ritos, em “Trágica Três”). Através desses dois personagens (Teo e Maria Marta) como alterego do Autor, todos os nossos demônios são “expiados”. Vem daí indagar: “O que dizer da nossa realidade mais imediata?”. Ele até chega muito próximo, mas Aguinaldo pode estar perdendo a chance de se transformar no único dramaturgo brasileiro de sucesso da atualidade. Por que não encontra uma forma mais explicita como, por exemplo, desbancar os “vilões” da atualidade – Bolsonaro e os bispos deputados? Por que não explicita que a sua telenovela está focada em duas realidades distintas, como as dependências que compõem as empresas de Império e a vida que corre lá fora, no Morro de Santa Tereza? A magnitude de José Alfredo tem a ver com o emblemático “Lampião” (alusão ao pequeno tablóide gay, liderado por ele, Aguinaldo, onde trabalhou durante os tempos da “Dita Dura”). A inclusão de Othon Bastos, personagem misterioso (foi agente da ditadura ou militou em organizações clandestinas contra o regime?) tem a ver com a sua participação como ator do clássico “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, filme de Glauber Rocha.

Não nos restam dúvidas que vivemos “momentos de encruzilhadas”, tal como se referiu Godard a respeito da obra de Glauber e do Cinema Novo. Com a voz, os interessados na discussão.


* Dramaturgo

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