quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Crítico com o rigor do cientista


O que chama em especial a atenção de quem toma contato, pela primeira vez, com a crítica literária de Salim Miguel, é a objetividade das suas análises. Trata-se de procedimento que difere radicalmente da forma de atuação da maioria dos críticos, que peca, sobretudo, por teorizações e pelo dogmatismo.Já o autor de “O castelo de Frankenstein” aponta virtudes e deficiências com total isenção, com o rigor de um cientista que tenha sob o foco de seu microscópio alguma célula, ou bactéria ou vírus raros ou desconhecidos, que se propõe a identificar e a catalogar, sem deixar escapar nenhum detalhe. Esse rigor e essa objetividade ficam claros nas colunas de crítica literária que assinou, por quase dez anos, no “Jornal do Brasil”; E, principalmente, no livro “O castelo de Frankenstein”.

A limitação de espaço impede que eu me aprofunde nessa obra e comprove o motivo do entusiasmo que ela me despertou. Pincei, todavia, algumas anotações de Salim Miguel, que são ínfima amostra da sua competência. Nelas ele justifica, por exemplo, méritos de escritores catarinenses, muitos dos quais desconhecidos do grande público. Destaca nuances estilísticas que passam batidas ao leitor comum, que atente apenas ao enredo (a maioria), e mesmo ao crítico desatento ou imperito. Leva em consideração, simultaneamente, tanto a forma quanto o conteúdo.  Analisando, por exemplo, o livro “As famílias”, de Adolfo Boos Jr., Salim Miguel sublinha seu detalhismo, que torna as histórias que narra tão verossímeis. Mas lamenta: “Depois do livro, e da boa receptividade, uma parada brusca e inesperada. Boos sumira do território das letras. Nada mais publicou”. Todavia, pondera: “Certamente devia continuar lendo muito, estudando, vivendo, aprofundando-se na teoria do fato literário e na análise do bicho homem; mas, certamente, ainda continuava escrevendo (pois o vírus se infiltrara nele – e é impossível uma pessoa livrar-se da maldição de escrever). Mas a ninguém mostrava os seus originais. Muito menos aceitava discutir a possibilidade de publicá-los. Negava, mesmo, tê-los”.

Boos, porém, voltou a escrever, e a publicar. E Salim Miguel acentua esse “retorno”, que se deu com três contos, publicados, respectivamente na antologia “Assim escrevem os catarinenses” e nas revistas “Ficção” e “Status”. Diz, definindo em apenas dois parágrafos o estilo desse escritor: “Em três contos, revelava não só o mesmo observador atento e interessado, tendo o que dizer e sabendo como dizê-lo, mas um crescente domínio da técnica narrativa. Na briga para domar a palavra ele atinge o tom justo, a medida exata, indo até o mais profundo da psique humana e investigando-a exaustivamente”.

Salim Miguel aduz, mais adiante: “Embora seus contos (de Boos) sejam mais de clima, de situações estanques, de localizações indefinidas, do que de ação e determinações geográficas precisas, há sempre a permanência de alguns elementos conhecidos e ambientes identificadores (tanto no interior da Bahia como nas praias de Florianópolis, ou ainda na maneira das personagens se colocarem diante de tudo que as cerca) em uma luta surda que se desenrola no interior dessa mesma personagem”.

Apresentando outro contista catarinense, o autor de “O castelo de Frankenstein” escreve: “Todo o absurdo da condição humana está presente, com suas contradições, em ‘No banco geral’, conto que abre um dos volumes recém-lançados por Emanuel Medeiros Vieira, e onde se cristalizam algumas de suas principais características de ficcionista. Ali se encontra o escritor preocupado com o destino do homem e perplexo diante dos desencontros que marcam a nossa época e ali estão, igualmente, tratamento e estilo que mostram a constante evolução de sua prosa, em busca de depuramento formal e de sempre melhor transmissão de idéias. É uma prosa tensa, elétrica, sincopada, com situações e planos se entrecruzando e fundindo”.

Sem inúteis e cansativas circunvoluções semânticas, Salim Miguel vai direto na veia. Em poucas palavras, e sem recorrer a dispensáveis e pedantes citações, caracteriza, em duas penadas, o livro e seu autor. Em relação a Emanuel Medeiros Vieira, o crítico meticuloso arremata: “Tempo e memória. Como uma imagem que desponta e some, vai vêm, tempo e memória, que constituem a chave mestra para se penetrar no mundo convulsionado de Emanuel Medeiros Vieira. Não estamos, aqui, tratando da valoração desse conto como peça una e íntegra. Talvez aí ela deixasse a desejar, pois a emoção incontida que dela ressuma faz com que o autor por vezes se perca. Mas é, ainda assim, sem dúvida nenhuma, uma peça básica para a melhor compreensão de uma obra em pleno processo de andamento, com sua conclusão tão elucidativa: ‘a memória paralisa. Voam os retratos, a casa cai definitivamente e soluçam todos os fantasmas desta minha terra de Florianópolis, evocados pelo vento sul’. Fantasmas que não o abandonarão como o vento sul nunca abandonou o poeta Cruz e Sousa”.

Boa leitura.


O Editor.

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Um comentário:

  1. O homem é bom mesmo. Mesmo pelos poucos exemplos dados, não há como não concordar.

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