sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Castelo de encantos e de revelações


A crítica literária de Salim Miguel conta com inúmeras virtudes, mas duas se destacam de imediato, de forma inquestionável: objetividade e simplicidade (mas não confundir simples com simplório, o que nosso personagem não é). Suas análises são claras, meticulosas, diretas e objetivas. São coisas de quem conhece, de sobejo, seu metier, e não só na teoria, mas, sobretudo, na prática. É um escritor avaliando a produção de outros escritores, o que lhe confere a credibilidade de que sempre gozou e que não vejo na maioria dos críticos. Apesar de exercer essa função por quase uma década no Jornal do Brasil do Rio de Janeiro, Salim Miguel publicou, ao que me consta, um único livro de crítica literária: “O castelo de Frankenstein”. Uma pena. Gostaria de ler outras obras suas com essa capacidade analítica ímpar e essa prosa fácil, que atrai e convence.

No capítulo intitulado “A face escondida”, do seu livro, por exemplo, Salim Miguel trata do relançamento do romance “Geração do deserto”, do catarinense Guido Wilmar Sassi, de quem nunca escondeu ser grande amigo. A obra em questão trata da revolta do Contestado, um dos fatos mais relevantes que marcaram o início da nossa conturbada história republicana. A tal crítica tem característica bastante peculiar. Foi escrita em forma de carta, informal e coloquial, ao amigo escritor. No texto, destacou as razões do romance haver lhe agradado tanto, o que, convenhamos, não é prática comum de críticos literários que “acham” que sua função se restringe a detectar defeitos, reais ou imaginários, não importa e criticar de forma mais acerba e contundente.

Em determinado trecho, Salim observa: “O Contestado não teve, como Canudos (ao qual, sob muitos aspectos, se assemelha) o seu cronista do dia a dia, que depois retomasse tudo aquilo e o transfundisse num documento de peso, numa radiografia social e humana. Teve relatórios, como o de Setembrino, o que é outra coisa. Faltou-lhe, numa palavra, um Euclides da Cunha. Pode-se dizer: mas Os Sertões é, a um tempo, um bem e um mal. Intimida. Inibe. Tanto que são poucas as obras explorando o tema, raros escritores tiveram, depois, coragem de se debruçar sobre aquela saga. Foi preciso, agora, Mário Vargas Llosa. Mas esta é outra história”.

Salim Miguel refere-se, neste caso, ao livro “A guerra do fim do mundo”, em que o escritor peruano romanceia a formação e a destruição do arraial de Canudos, liderada, no primeiro caso, pelo beato amalucado Antonio Conselheiro e no segundo, por tropas do Exército brasileiro. Feito o reparo, o crítico entra direto na análise do romance de Sassi: “Geração do deserto pode ser lido por sua força e autenticidade, pela sofrida humanidade que cria, pelos conflitos que arma e desenvolve. É um painel abrangente montado em pequenos blocos; neles, a tensão se estrutura a partir de valores ficcionais próprios, manejados por um autor que domina sua técnica e plenamente dotado para o gênero. E se elementos da realidade se fundem e confundem a elementos míticos, tanto melhor. Não importa aqui se personagens como Elias de Morais, Zeferino e seu filho Nenê, Júlia Oliveira e José Maria realmente existiram; tinham papéis passados em cartório. Importa, sim, se a partir da verdade que lhes dá Guido Wilmar Sassi eles passam a existir”.

Dito isso, Salim arremata: “É nesse universo caótico que se insere teu livro, um grito de denúncia procurando, por igual, resgatar parte da memória de um país que teima em não querer ter memória ou elidir a memória que não lhe é agradável (vide Ruy Barbosa mandando queimar os documentos sobre a escravidão no Brasil). Isolados, ilhados, acuados, os caboclos se agarravam a antigas crenças, falavam na volta do monge João Maria, que viria resgatá-los, denunciavam a República, que só males lhes trouxera, querem de novo o Império, reelaboram um passado que inexistiu, formam batalhões comandados pelos Doze Pares da França – como ‘par’ são dois, temos, então, 24 ‘nobres’ organizados nas forças e combatendo contra os hereges. Seria bom, no caso, num enredo de interpenetração e interpretação, aproximar estes de outros episódios que se lhes assemelham, como, por exemplo, além de Canudos, os Mukers no Rio Grande do Sul”.

Finalmente, para encerrar, mostro um trecho da análise de Salim Miguel do romance “Tocaia Grande”, de Jorge Amado. Mais uma vez, o crítico atento desfila sua objetividade de jornalista, definindo, em poucas palavras, o clima em torno do qual se desenrola o enredo. Escreve: “Jorge Amado joga com dados que lhe são caros e que ele manipula com conhecimento. A história vai se erguendo, armando, surgem os entrechoques de personalidades, há o aparecimento de dificuldades inerentes ao tipo de vida que levam. Mas tudo é ultrapassado. O jogo do perde/ganha continua. E a natureza, sem graves percalços, se adapta e se transforma sem maior prejuízo. É bem depois, com a chegada do processo de industrialização acelerada e indiscriminada, com o chamado ‘progresso’, que o equilíbrio começa a se romper. Entram aí as relações de produção capitalista, a agressão violenta contra a natureza, resultado de um sistema econômico que só visa o lucro. Mas nesse ponto Jorge Amado já abandonou Tocaia Grande (que vai passar a ser Irisópolis), já largou seus personagens – e deixa a conclusão mais lógica para o leitor. Ele não está fazendo ensaio, não está querendo comprovar nenhuma teoria. Através da ficção, contando sua história, ao revelar problemas inerentes à condição humana, tudo fica implícito”.

Como o leitor pode constatar, neste rapidíssimo passeio por este insólito “castelo” erigido por Salim Miguel entre duas capas de um livro, não há nenhum monstro de teorizações inúteis, de classificações pedantes e de citações cansativas em suas dependências. O que se vislumbra é o lado humano (insuspeitado) de escritores e seus personagens. É a comprovação explícita de um jornalista de que a crítica literária não é (ou pelo menos não deve ser)  exercício esotérico, destinado a meia dúzia de iniciados, estes sim os verdadeiros Frankensteins da Literatura, encerrados em suas frágeis e instáveis “torres de marfim”.

Boa leitura.

O Editor.

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