terça-feira, 25 de novembro de 2014

O humanismo de Rubem Costa


* Por Luiz Carlos R. Borges


Um dos aspectos mais marcantes na obra literária de Rubem Costa, seja em suas crônicas, seja nos trabalhos ficcionais e historiográficos, é o seu humanismo. Em seus escritos, sempre há espaço para um olhar generoso, direcionado para a criatura humana, em sua grandeza ou fragilidade.

Lembro, aqui, três exemplos.

Em seu livro de narrativas curtas, “3 Contos de Réis e Outras Histórias” (2003), cabe destacar, entre tantas, aquela intitulada “Onde os Limões Florescem”. Nela, o autor relembra o grande e doloroso impacto que lhe representou, menino ainda, a notícia do diagnóstico de uma doença terrível, naquele tempo com incerta probabilidade de cura, e os desassossegos e angústias seguintes ao tratamento da moléstia, o isolamento a que teve de ser relegado, o cauteloso afastamento de seus amigos e companheiros de escola. O protagonista seria, portanto, o próprio escritor.

Seria? Pois eis que surge na narrativa o amigo Chiquinho, habilidoso no violão e, sobretudo, no violino. Chega ele, para visitar o amigo, sobraçando o estojo preto do violino, e logo se põe a executar no instrumento uma valsa vienense. De Strauss, ele anuncia. Ao som da música o ânimo do doente se eleva, vai embora a angústia e ele se surpreende a sorrir. “Conto dos Bosques de Viena”? –  arrisca ele, finda a execução. Não, corrige o amigo músico: “Onde os Limões Florescem”.

Confessa o escritor: a denominação era bem a dimensão da mensagem que caminhava dentro de mim, enquanto, pelas suas mãos ágeis, o arco se distendia, em idas e vindas, nas cordas do violino. A música, a presença do amigo, suas palavras de estímulo devolvem a esperança ao doente, que passados alguns dias, se recupera, cura-se – e sobrevive a todos os amigos, a Chiquinho inclusive: a própria vida reflorescera.

Por isto, por certo ângulo o protagonista da estória é Chiquinho, portador da mensagem de esperança, transmitida pela linguagem da música, e, por seu gesto, por sua arte, por sua simplicidade e bondade, repleto de calor humano, repleto de grandeza humana.

Em suas crônicas, impossível não realçar a magnífica “Eu e a Casa” (“Antologia da ACL”, 2010), seguramente um de seus mais belos textos, exemplar em sua conjugação harmônica entre a sóbria e contida emoção e a elegância estilística que constitui outra das características mais notórias do autor.

Nela, Rubem relembra a casa onde nasceu, em Campinas, e onde passou a sua infância, ao lado de três irmãos e sete primos: uma população! E que nos dias de hoje, abrigando um sebo de livros, ainda resiste, bravamente, ao assédio das intempéries e das especulações imobiliárias.

Sobre a fria arquitetura da casa o escritor faz projetar a força de sua memória e de sua arte, fazendo-a pulsar com as lembranças de um tempo remoto em que entre suas paredes um menino resistia silenciosamente às dores de uma doença atroz, e rezava, e sonhava, e sobrevivia. Assim, transmitindo ao antigo lar a sua própria centelha de criatura humana, o escritor não só engendra o milagre da recuperação de um tempo ido, salva a Casa das agruras da finitude, como ainda, e sobretudo, humaniza-a.

Daí, dizer o memorialista, mescla de melancolia e humor digna de Machado:

Eis que ambos viramos “brechó”. Ela recolhe e vende ideias engavetadas em livros esquecidos. Eu, no baú das lembranças, engaveto ideias naufragadas e sonhos perdidos. Assim, zombeteiro o tempo nos reúne. Ri quando pensamos que ele passa, quando somos nós que passamos por ele. Sarcástico, outro dia me fez cruzar com ela, que nem sequer me reconheceu. Indiferente, depois de tantos anos, hoje me ignora.

Este humanismo de Rubem Costa comparece mesmo nos registros de natureza historiográfica. Em sua obra mais recente, “Bicentenário de Campinas – A Saga que a Cidade Amou – 1739-1939” (2013), compõe ele o registro documental do que foram as festividades em torno do “primeiro” bicentenário de Campinas, a partir da concepção, posteriormente abandonada, de que a fundação da cidade remontaria ao ano de 1739.

Tais festividades foram testemunhadas pelo próprio autor, então na qualidade de repórter do jornal “Diário do Povo”, designado para a cobertura do evento.

Nas páginas do livro, historia-se o contexto político em que tiveram lugar as comemorações;  desfilam os nomes de figuras ilustres da época, direta ou indiretamente associadas às efemérides, tais como o ditador Getúlio Vargas, o então interventor do Estado de São Paulo, Adhemar de Barros, o vereador Ernesto Kuhlman; descreve-se o recinto construído para a instalação de uma exposição-feira, com espaços destinados a um cassino, um bar com danceteria (“Bavária”), um parque de diversões, os vários pavilhões, a avenida aberta para o acesso a todas essas dependências...

Em meio a esses registros, de notável interesse documental e historiográfico, eis que surpreendentemente, no capítulo intitulado “No Palco, o Sonho”, irrompem (quase como uma intromissão, quase como uma heresia, mas, na realidade, manifestação daquele peculiar humanismo do autor), as personagens marginais de Sarita e Uiara.

Quem são elas? Duas prostitutas. Que aproveitam a ocasião das festividades do bicentenário para exercitar um ofício extraordinário, como cantoras no palco do “Bavária”. E que, finda sua apresentação, por volta da meia-noite, retornam aos seus afazeres ordinários, nos bordeis instalados nas proximidades do Mercadão: a negra Sarita, no “Cabaré da Sophia”, sua companheira Uiara, na “Casa da China”.

Vai além o escritor; ingressa ainda mais na intimidade das duas personagens e descreve os seus sonhos de ascensão social e profissional: Sarita almeja, um dia, deixar o Cabaré frequentado por uma clientela de parcos dinheiros e ser admitida na “Casa da China” e em seu salão oriental decorado ao capricho das dinastias Ming e Qim, lembrando o interior de um templo de Pekim... Uiara, por sua vez, não se resigna a seu atual estado, e guarda também um grande e igual desejo oculto: participar das noitadas do Cassino Atlântico. Um sonho inalcançável.

É assim, através desse gesto amoroso,  a ultrapassar os convencionais limites do exercício de uma historiografia oficial, que Rubem Costa resgata das sombras duas criaturas fadadas ao anonimato e ao esquecimento, para inseri-las no rol das coisas memoráveis – vale dizer: para inscrevê-las nos palcos da História.



* Juiz aposentado e escritor

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