segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Em linha reta


* Por Assionara Souza

Vamos convidar os mortos para uma grande orgia. Com os vivos não. Nos levam direto ao inferno. Grito em sussurro constante o nome da rainha. Espero que ela me encontre numa dessas esquinas. E me reconheça. Estou praticamente pronta.  Desdenho com tamanha agilidade as coisas mais consideradas sérias. E capricho no ponto do estilo as idiotices. A rainha já anda me entorpecendo. Sua voz é de uma suavidade aguda. Ela chora. Quero ouvir a palavra completa. Como se o meu dia fosse todo livre. E houvesse pela casa uma ordem. Ao alcance da mão. Fome. Sono. Sede. Nem mesmo o desespero me atingirá. Definitivamente enlouqueci por vontade. O meu riso compartilha da certeza destilada no olhar. Na voz da rainha há o prumo da regência. Ela conduz o movimento certo do dizer.  Riscos de luzes sonoras que nos levam à embriaguez mais lúcida. Na noite da grande solidão, a rainha virá. Sentará conosco à mesa. Achará a vida absolutamente ridícula sem a sua presença. "A completude estava em mim. E eu não sabia". Sua boca vermelha e úmida e entreaberta. Nossa passagem secreta. Tudo em silêncio à volta. Seguramos essa emoção em nossas mãos como se um peixe vivo. Um autêntico milagre. Somos suas discípulas. As três mulheres de fluxo incontido. Quem nos saciará?

Crio gatos imaginários, enquanto espero. E quando eles roçam minhas pernas com o peso grave do corpo, sinto uma vontade arrepiante de gargalhar. Mas controlo. Engulo o desejo e deixo ele espalhar-se pelo meu corpo em um gozo particularíssimo. A rainha nos ensina a viver secretamente. Não queremos mais os vícios menores. Eu e minhas irmãs.

A mais nova — ninguém a entende. Ninguém. Ela não tem se cortado ultimamente. Nas noites em que saímos com os cafajestes e uivamos para a lua, um filete vermelho e espesso passeia do nariz à boca. Ela me sorri com os olhos de jabuticaba. E diz que quer ir para casa. Nesse momento eu aceito o amor como a grande condição. Depois disso ela vive o seu retiro. Toma água mineral gaseificada no terraço ao primeiro sol das manhãs. Mira o céu e compõe um poema: "O horizonte é o mais perfeito verso de Deus / visto à distância". A felicidade a atinge e ela se sacode toda como uma cachorrinha. Seu jeito de acordar. Corre pela casa se despindo. Aumenta o volume. A música a abraça. E brinca com o corpo.  Uma garota de calendário, a nossa irmã mais nova. Tem um baú dourado em seu quarto. Onde guarda as bonecas. Uma vez flagramos o nosso irmão fodendo uma delas. Ele jamais compreenderá o nosso mistério. Ficamos as duas nos sentindo muito bem ao ver aquilo. Nos sentimos também.

Quando está triste desanda a mexer no baú cantando uma baladinha pop qualquer. Escolhe entre as bonecas aquelas que serão sacrificadas. Amarra fitas vermelhas no pescoço de suas vítimas e as pendura em vários cantos da casa. Todos jantamos a luz de velas e nos pretendemos atores de um roteiro insólito. Na manhã seguinte, acordo bem cedo e desfaço os vestígios. Eu mesma compro as flores e encho delas a casa. Ela agarra o meu braço e seguimos pela avenida principal. Aptas a adquirir novos brinquedos. Duas crianças que somos.  Desconfio que ela seja a preferida da rainha.

Eu sou a do meio. Transito no meio. Vou até onde o corpo menos pode suportar. Beleza às avessas. Tenho ossos delicadíssimos e gosto de passear pelos telhados. Os covardes veteranos se espantam com a minha coragem. Arrisco-me ao extremo para levar até eles o nome da rainha. Quando me espancam, encarno Bovary e sua última mirada antes da morte: A rainha vive.

Do outro lado da linha, no lugar dos perdedores, eles escutam a minha oração com suas cabeças baixas. Um malabarista me acompanha. Ele é o artista que, na madrugada, com sua vigorosa água, mata a sede dos que mendigam companhia. Sofre pelo meu corpo, mas não pode tocá-lo. Sabe que suas mãos são grandes demais para a minha violenta delicadeza. Eu sou a guardiã. Aponto os mistérios. E comprovo. A rainha está por vir.

A última irmã. A primeira. Está pronta. Obedece prontamente. Não se descabela por bagatelas. Não se descabela. Uma xícara de chá. Uma xícara de chá é sempre o melhor. Melhor depois de um banho ensaboando bem a cabeça. Com o melhor xampu. A mesa comporta objetos. Para ser suavemente tocados. Nada falta. Creme. Vegetais. Leite bem branco. Gertrude ainda não veio? Mas ela deve estar a ponto de. Não é bom causar má impressão diante de convidados tão ilustres. Os meninos tomaram banho. Um risco vestir a saia vermelha. No ponto em que estava mataria dois coelhos. O coelho da esquerda disfarçava a timidez com um vozeirão que só vendo. Um vozeirão derretido em olhos ternos. Ela imaginava. Procura entre os ouvintes a cabeça graciosa do amante. Distâncias condensadas. Sim. Seja também um nobre cafajeste. Fale-me essas coisas todas ao meu ouvido na hora mais rígida do seu corpo. Quantos anos você acha que a Mary Ann tem? E me pegue como a uma mercadoria cara e já paga. Um peixe de olhos esbugalhados embrulhado no jornal do dia. Poderá até dizer que é coisa sua. Desconfio que a cintura de Mary Ann anuncia um novo rebento para a família. Se puxar ao pai. Ainda que bem. E o coelho da esquerda sorri para o dono da venda. Boa tarde, Senhora Stein! Quantas mercearias existem por aqui, hein?! Agarra o peixe embaixo do braço. Sorri com um contentamento fresco. A saia foi sim uma boa escolha. O coelho da direita demasiado umbilical. Os olhinhos vivazes. Os olhinhos crispados. Vamos, meninos! Façam disso um bom quadro para pendurarmos naquele espaço da sala em que o papai fez um furo errado. O coelho da direita saltita pelo auditório. Não cabe em si. Ele não faz também idéia de quanto é difícil ir até a mercearia. Ir até a mercearia e escolher com os sentidos um bom peixe. O que temos para jantar, querida? Ela estica o pescoço com o corpo pendido um tanto para a esquerda. As duas mãos molhadas cravadas nos quadris. Um excelente avental esse com que a Gertrude nos presenteou. Realmente uma mulher de refinado gosto. A risada do coelho da direita fisgava o sorriso somente de um lado a ponto de quase fechar o olho pra onde a boca corria. O corte. Cortar o corte. Cortar o corte através. Um crescente atravessar em ascendência seguido de inigualável gemido, aponta sutil, rubras dobras radiantes. As alegrias virão multiplicadas de novidades. O outro olho se mantinha aberto e risonho. E ela pensava que o amor teria sido sua grande ruína. Tarde demais para desfazer o traçado. Um rosbife em centeio com muita maionese! Onde ela está enquanto todos ali? Brindando com os mortos em taças transbordantes.

Paira, sob sua cabeça, a magnífica coroa.


* Escritora

Nenhum comentário:

Postar um comentário