segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Sem salvação

* Por Daniel Santos


Muito antes de a barca chegar com o estranho fardo de estopas e jornais velhos, uma mulher – a mais virtuosa delas, talvez – correu as ruas do vilarejo para advertir quem encontrasse sobre a proximidade do Mal.

Ninguém, no entanto, lhe deu ouvidos, que se entretinham a maior parte do tempo em orgias públicas, com mesa farta, beberagens e danças convulsivas. Não era alegria – sabiam –, mas já impossibilidade de reagir.

Daí, os requebros lascivos, quase sinistros. Mas a derrocada só começava. Que resistissem – insistiu a mulher de quem agora riam. Afinal, de virtuosa passou a louca, porque em definitivo diferente dos demais.

E a barca chegou! Seu vulto brumoso rompeu o hálito da manhã e atracou suavemente na cidadezinha de atmosfera licenciosa, onde as fanfarras progrediam pelas ruas como em louvor ao conceito de ruína.

Enquanto gargalhavam, ratazanas, milhares delas!, saltaram da barca. Logo, invadiram casas e banquetearam-se junto aos vadios que nada estranharam. Ao contrário, aí a festa mais se animou. Estava feito!

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.



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