quarta-feira, 29 de outubro de 2014

João Mamulengo é nome de boa música


* Por Mara Narciso

Ouvi a música duas vezes na Rádio Unimontes no Programa Nossa Arte Nossa Gente, que mostra canções que não tocam na grande mídia e dá oportunidade a toda gente. Trata-se de uma composição que disputou o Festival de Música Fenae 2008 Apcef, Colatina, ES, e que foi classificada em segundo lugar. A sua letra foi considerada a melhor delas. Feita por Dimas Deptulisk que a canta junto com Efrahim Maia, entrou pelo meu ouvido, avançando alma adentro, seduziu, emocionou e acabou tirando-me lágrimas. Aconteceu como a flauta de Hamelin. Fui seguindo os seus acordes e acabei conduzida à dura realidade de um João Ninguém, o João Mamulengo, solitário, morador de rua, bêbado compositor, ou compositor bêbado, que se inspirava na Bíblia para fazer versos. Ainda ontem, já chegou à praça “meio tomado, prenhe de cachaça”, levava nas mãos um litro e um livro. Sentou-se no banco da praça e começou a compor.

Mas a vida de João nunca tinha sido leve. Trazia uma imensa carga, pois, sendo escória do mundo, carregava todos os lixos, todas as infâmias e misérias da existência. Não teve escolha. Era carregar e muito ainda carregar, e esses lixos lhe eram jogados pelos olhares de desdém dos passantes. Assim “nas costas a carga, do lixo do mundo”. Mais abandonado que um cão sem dono, esse homem perdido tem alma, e esta alma tem fundo, para sofrer e se perder a cada dia mais no mundo. “Mundo, mundo, vasto mundo, e se eu me chamasse Raimundo? Seria uma rima, e não uma solução” (Drummond).

A vida de João Mamulengo é uma desafinação só, do começo ao fim, e seu violão acompanha sua sina, de corda quebrada, empenado, desafinado. Como fazer composições em situação tão adversa? Mas João Mamulengo segue fazendo, e nem sabe o porquê. Ajudado pela cachaça e pela Bíblia, vai catando e criando versos, retirados lá de dentro das suas dores históricas. Vida de morador de rua, quem quer saber dela? Nem olhar, muito menos sentir-lhe os odores. Medo de “pegar” a triste sina.

Na má sorte não se está acompanhado. É imperativo estar só. O peso do mundo dobra as suas costas, e João está encurvado.  Grávido que estava ao chegar, cheio de ideias, prenhe de versos e de cachaça, vê seu parto acontecer. “Fazendo sozinho seu parto na praça, um bicho parindo na solidão”. Mas não tem alegria seu soneto, e nem poderia. As dores da vida não lhe favoreceram o talento e os versos são sem graça.

Sem forças, João sabe que esta será sua última música. Vai compondo, tirando palavras do livro, tocando seu violão claudicante, empenado, poucas cordas. E sem energia, João “menino perdido na multidão”, vai se encurvando mais e mais, vai ficando parado, calado, torna-se pálido, está morto. Morreu deixando uma música inédita. Ninguém sabe como seria esta sua última obra.

O que a música de João Mamulengo mais faz, é machucar quem ouve seus lamentos, porque quem a escuta sabe que em muitas esquinas há homens grávidos de vontade e sem oportunidade de colocá-la em prática. A melodia é má, pois maltrata e faz chorar. É algo que, ao se ouvir, não se consegue passar incólume. Eu não passei. Corri pela internet e trouxe um pouquinho do que senti ao ouvir essa dramática canção. Sua letra está abaixo e a sua melodia no Youtube. Espero que gostem, porque eu gostei.

“Ainda ontem vi João
Sentado no banco da praça
Tava prenhe de cachaça
Levava uma Bíblia
E um litro na mão
Nas costas a carga
Do lixo do mundo
No fundo da alma
O abandono de um cão
Menino perdido
Na multidão
Eh! João
O violão do mundo/ tá desafinado
Tá faltando corda
Tá todo empenado
E João Mamulengo
Ali parado
Vem ver João
Com a espinha curvada
Bebendo cachaça
Fazendo sozinho
Seu parto na praça
Um bicho parindo
Na solidão
Vem ver João
Tirando do livro
Um soneto sem graça
Compondo na praça
A última canção
Eh! João
O violão do mundo tá desafinado
Tá faltando corda
Tá todo empenado
E João Mamulengo
Ali parado
Menino perdido
Na multidão
Um bicho parindo
Na solidão
Curvado, ali, parado
Pálido, ali, parado
Morto, ali, parado
E João Mamulengo
Calado”.



*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   


2 comentários:

  1. Que figura, esse João Mamulengo. E que retrato bem feito, Mara. Vou chover no molhado e, de novo, dar meus parabéns por mais este.

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  2. Quando pensei em conhecer João Mamulengo ele já não existia mais. Estamos quase sempre atrasados nas nossas vontades de fazer justiça. Obrigada, Marcelo.

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