segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Volta ao pó

* Por Daniel Santos


De início, uma coceira no olho, uma coceirinha de nada. Mas o incômodo cresceu. Era como se um grão de areia, pressionado pela pálpebra, arranhasse o globo ocular.

Fosse apenas isso, ela suportaria, mas há tempos amargava um processo de desintegração, mais grave até que os ataques de vândalos, séculos antes, quando perdera nariz e parte do braço esquerdo.

Envelhecera. Todo o seu granito ganhara porosidade, transformara-se numa espécie de calcário que, mais dia, menos dia, se reduziria a pó.

Mais dia, menos dia, não. Esfarelava-se já a partir dos olhos! Tinha, pois, de se apressar. Desceu, então, do pedestal e manquejou pelas ruas com um rastro de areia atrás de si até encontrar um posto médico.

Os séculos lhe pesavam como nunca. Já não se lembrava mais da própria data nem do que significava, e quanto mais puxava pela memória, mais farinha produzia. E foi assim, antes mesmo das providências médicas,  que a estátua abdicou a História e ruiu, sepultada no próprio pó!

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.





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