terça-feira, 30 de setembro de 2014

Reconhecimento posto que tardio

O norte-americano Philip Kindred Dick, ou Philip K. Dick (ou então PKD, como assinava sua produção literária), foi, sobretudo, um inovador na ficção científica. Em vez de concentrar sua atenção no espaço, em viagens intergalácticas, como a maioria de autores do gênero fazia (e faz), optou por extrapolar como, na sua opinião, seria nosso mundo no futuro, pagando o preço da poluição, das injustiças sociais e da maldade latente no coração humano. Vários dos seus livros (e produziu muitos, dezenas deles), seguem essa linha. Em alguns aspectos, lembra “1984”, de George Orwell, ao “criar” ditadores cínicos, cruéis e sem piedade, de fazer inveja a “Big Brother”.

Apesar da sua importância literária, como inovador do gênero pelo qual optou, aconteceu com Dick algo que considero injusto, cruel, mas muito mais comum do que muita gente pensa: foi reconhecido, apenas, depois da sua morte. Encarou, por exemplo, incontáveis dificuldades para publicar seus livros. Vários e vários e vários deles foram recusados por editores, que achavam suas histórias esquisitas demais e seu autor um tanto quanto “amalucado”. A bem da verdade, seu comportamento, nada convencional, contribuiu bastante para isso. O tempo, contudo, encarregou-se de mostrar que ali estava um gênio das letras. Pena, para ele, que isso só aconteceu depois da sua morte.

Faltou pouco para que Dick usufruísse pelo menos o início do seu sucesso, que se deu com a versão para o cinema do seu romance “Do androids dream of electric ship?”. O leitor pode não estar identificando a que filme estou me referindo, pois desconhece algum com esse nome e que tenha tido êxito incontestável de crítica e de público. E tem razão. Porém, as coisas mudam de figura se eu informar que a produção em questão recebeu o nome de “Blade Runner, o caçador de andróides”. Bem, Dick conquistou a fama de forma “transversa”. O verdadeiro mérito do êxito desse filme deveria caber aos roteiristas Hampton Fancher e David Peoples e, claro, ao seu diretor, Ridley Scott, e ao elenco que tem, nos principais papéis, astros como Harrison Ford, Rutger Hauer, Sean Young, Edward James Olmos e Daryl Hanna, entre outros.

E por que faço essa ressalva? Porque o roteiro de Blade Runner lembra, somente, de maneira bastante vaga, o romance de Philip K. Dick. Mas esse escritor polêmico e até então injustiçado, considerado, antes da morte, “autor menor” ao qual praticamente ninguém dava importância, não colheu, em vida, nem mesmo uma migalha do sucesso de que goza (com justiça) até hoje. Morreu em Santa Ana, na Califórnia, em 2 de março de 1982, pouco depois de completar 57 anos de idade (nasceu em Chicago em 16 de dezembro de 1928) e o filme foi lançado, apenas, em meados desse ano. Foi Hollywood, no entanto, que o “descobriu” e o consagrou. Depois de “Blade Runner”, vários de suas novelas e contos foram adaptados para o cinema e enriqueceram muita gente. Menos... Philip K. Dick (ou PKD).

Cito, entre outras de suas obras adaptadas para as telas, “Minority Report” (que no Brasil recebeu o título de “Relatório Minoritário”, dirigido por Steven Spielberg e estrelado por Tom Cruise), “O vingador do futuro” (com Arnold Scharzenegger), “Assassinos cibernéticos” (com Peter Weller), “Pago para esquecer” (com Bem Affleck), “O vidente” (com Nicolas Cage), “A scanner darkly” (com Keanu Reeves) e “Os agentes do destino”! (com Matt Damon), dos quais consegui me lembrar; A partir do sucesso desses filmes, seus livros foram redescobertos pelas editoras, relançados e, ao contrário do que havia acontecido quando estava vivo, esgotaram edições e mais edições e seguem sendo publicados e vendendo muito mundo afora. Apenas Blade Runner, que foi indicado para o Oscar em 1983, já teve sete versões, além da original de 1982. Mas que vantagem esse autor sofrido e injustiçado teve do seu talento? Praticamente nenhuma!! É o tipo de reconhecimento que eu não gostaria de ter: o póstumo. Se algum dia eu tiver que ser reconhecido (se merecer isso, claro) que o seja enquanto estiver vivo. Caso contrário... é preferível ser esquecido para todo o sempre.

PKD explorou, em muitas das suas obras, temas como a realidade e a humanidade. Criou personagens comuns, pessoas como cada um de nós, sem recorrer, portanto, aos heróis galácticos de outras obras do gênero. Essa foi sua grande e maior “sacada”. Foi o precursor do que ficou conhecido como cyberpunk, A enciclopédia eletrônica Wikipédfia observa, a propósito desse escritor peculiar: “Inspirando-se em ideias do budismo, cabalismo,  gnosticismo e outras doutrinas herméticas, e combinando-as com certos aspectos das novas crenças na parapsicologia, extraterrestres e  percepção extra-sensorial, criou mundos alternativos nos quais acabou eventualmente por julgar viver. O autor acreditava ter sido contatado, em março de 1974, por uma ‘mente racional transcendental’, o que ele julgava ser uma teofania. Detalhes sobre este evento são relatados no romance Valis, publicado em 1978”. Como se vê, nosso personagem era mesmo um tanto “amalucado”.
Dizia-se que era paranóico, com mania de perseguição. Bem, nesse aspecto, é possível sair em defesa de PKD. Em sua juventude, ele manteve contatos com o Partido Comunista dos EUA, com o qual simpatizava. Por causa disso, foi alvo de implacável investigação do FBI e do serviço secreto da Força Aérea. Destaque-se que o mundo atravessava, então, o auge da chamada Guerra Fria. Sua suposta “mania de perseguição” não era, portasnto, propriamente, paranóia, mas dura realidade em sua vida, marcada por tantos fracassos e decepções. PKD foi (e é) justamente reconhecido, é inegável. Mas... somente após a morte. Reitero: é o tipo de reconhecimento que dispenso completamente.

Boa leitura.


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