sábado, 20 de setembro de 2014

Hospedaria das estrelas


* Por Dinah Silveira de Queiroz

Caminhava-se através de pequeninas casas que se apoiavam umas às outras e em breve se chegava a um retiro de caravanas. Mas naquele dia, junto a uma aguada no centro, o número de forasteiros, que ali haviam chegado, era enorme. Faziam pequenos círculos nessa hospedaria a céu aberto, sob a luz das estrelas; muitos cantavam alto sua ascendência, no encarreiramento de nomes ressoantes, como se afiassem a língua para, no dia seguinte, diante de um copista e do rolo de pele de carneiro, tornarem presentes suas linhagens de Davi. Havia cameleiros encostados a enormes animais indormidos que bafejavam o ar com seu hálito quente. Burricos relinchavam; eram presos junto a seus donos, que se envolviam em mantos e tentavam dormir a céu aberto. Perto da entrada um velho solitário cruzava as pernas encostando-se ao muro e repetindo orações, imóvel e meio desfalecido. Agarrava-se às preces, quando soavam os gritos alegres das gentes nômades que ralhavam por motivos de cargas. Lá atrás, havia outros pequenos espaços murados, feitos de pedra mas também a céu aberto. Comprimiam-se pessoas ali dentro, sob mantos, carga humana mais rica. Estas divisões agora custavam bom dinheiro e quase só as mulheres as haviam ocupado, enquanto os maridos, irmãos ou pais ficavam lá foram no envolvimento daquela noite ruidosa, em que uns se roçavam a outros, em que seria possível até morrer, agonizando aos gritos, como poderia ser o fim do velho em preces, e talvez não houvesse ouvidos, pela grande confusão entre as vozes humanas e a dos animais, a chegada de novas carroças, a oferta orgulhosa de ricos comerciantes que tomavam as câmaras - se é que assim se podia dizer daquelas separações em pedra - para as suas famílias, no tinir da moeda mais cara.

Maria esperava, olhando com curiosidade ferida, todas as vezes que o largo portão se abria, para aquela gente ali amontoada, cheirando à banha de carneiro e acendendo suas pequeninas fogueiras nos quatro cantos dos muros. Depressa voltou José amargurado, mas escondendo os cuidados:
- Se quiseres, encontramos algum lugar, lá no fundo, depois dos cameleiros.
- Mas já vejo que para mim seria difícil.

Sim, José via que a face assustada de Maria agora parecia anunciar para breve um acontecimento que não deveria ocorrer naquela promíscua hospedaria a céu aberto. Lembrou-se de um seu parente que possuía duas casas, Gessel. Uma delas ele a conservava sempre pronta para receber amigos ou alguém da numerosa parentela. Era um mercador rico. Quando os cascos do burrinho rasparam as pedras do pórtico e o relinchar alegre soou diante da casa, ele já estava, o parente mercador, às voltas com um homem que exigia fosse hospedado por uma noite, ali em sua mesma casa e, à guisa de pagamento, empurrava-lhe desde já peças de cobre, panos de linho, murmurando agradecimentos antecipados e consternando o dono da casa. Ele notou a chegada de José, deixou de lado o mercador e sua face se abriu numa alegria intensa.
- Eis o filho pródigo que volta a Belém!... com outros.

Mas antes que pai José fizesse descer Maria, ele mesmo foi afetuosamente saudá-la:
- Que bela esposa tu encontraste! Para nós, seria grande orgulho tê-la em nossa casa; mas desde ontem fomos quase assaltados por pessoas que nos forçaram a abrir a porta e lá estão apinhadas e tão prontas a trocar o teto pela má palavra, que, estou pensando, vou dormir fora de casa pois a noite está limpa.

Vendo o cansaço e a desolação de Maria, não teve senão uma pequena oferta cortês para fazer-lhes:
- Dentro de quatro dias a cidade ficará vazia, e então serão convidados para vir morar aqui ou na segunda casa, além desta ladeira. Ela é um pouco retirada da cidade mas, livre de tantos malcheirosos, poderá ser até agradável.

José agradeceu o oferecimento:
- Irmão, disse-lhe, carregando no tratamento: Ainda, quem sabe, habitaremos tua casa, ofertada de boa vontade, pois creio que ficaremos algum tempo mais em Belém.

Retornaram a andar, e o que se via agora eram pessoas dormindo fora de casa, acampadas nos currais, ou então, como eles, vagando de cima a baixo pelas vielas à procura de um lugar. De tempos em tempos, pai José olhava Maria, assim percebendo sua ansiedade.
- Devias ter ficado em casa de teu pai.

Ela se fazia forte até mesmo sabendo que o nascimento não ia demorar muito, pois o peso do menino parecia cada vez maior e conhecia que o filho estava pronto a dela desprender-se. Pai José mediu as colinas e se lembrou de quando menino bem se ocultava da chuva em cavernas abertas para guardar ovelhas, em outras cavas que eram depósitos de mantimentos. Novamente o burrinho, desta vez dificilmente tirado de uma touceira de ervas, foi movimentado. As casas iam ficando para trás. Sentia-se vivo o odor das plantações. Um pequeno caminho apareceu por entre os campos, onde os pastores amedrontados com a quantidade de forasteiros e suas fomes vigiavam os rebanhos e se chamavam pelas escuridões, tendo muito bem amarrado as ovelhas, com suas vozes quentes e roucas, ou até troando pequenos sons que eram imediatamente respondidos em flautas de ossos de animais.
- Não, vamos mais longe, mais longe... - pedia minha mãe.

Caminhavam agora na direção de uma gruta escondida. Esta deveria estar lá, pai José bem o sentia: no alto dela havia um abrigo para pastores, embaixo, lugar para as ovelhas.

O Senhor fosse louvado, lá estava ela, sim, completamente vazia, tendo os pastores aproveitado a noite mais seca e a convivência de outros, para juntos guardarem os rebanhos, em dias de tantos estrangeiros e visitantes. Lá estava ela, como quando a conhecera e passava tardes vendo, de sua altura, o céu corar e a noite acender as estrelas. Lá estava ela, bendito fosse o Senhor: o lugar onde Maria podia, sem ser ferida por aquela gente ruidosa, em seu acanhamento, tomar o descanso de uma noite, enquanto ele providenciaria hospedagem própria.

Na primeira parte da caverna havia a manjedoura e palhas no chão; em cima, mais alguns passos na rocha, e eles poderiam deitar-se e esperar o dia, para que pai José se inscrevesse e obtivesse o lugar desejado. Mas enquanto José dormia, na parte alta da gruta, Maria deslizava e, acendendo um archote que haviam trazido, iluminava o pequeno cocho; tomou do chão as palhas, cobriu-o e escorregou mansamente ao lado dele, o archote iluminando seu rosto angustiado. Principiou a chorar baixinho. "É assim que tu vens, Senhor meu filho?"

O tempo se havia cumprido.

Lá bem longe, o canto dos pastores vindo ao vento, chamava uns aos outros. Então eu gritei à Vida. Eu me havia separado da doçura e da bondade do seio de minha mãe e gritava e chorava, uma criança ferida pela aspereza de viver, porque o ar dói em nosso peito e começar a vida será sempre, para todos os pequenos, também começar a gritar, chorar muito diante do desconforto: as criancinhas logo sabem de sua dor e de sua áspera condição. Eu gritava todo o choro, eu clamava como clamam os bem pequeninos. Maria cuidava de mim. Tirava de seu ombro o manto de linho, enrolava-me nele. "E tu, Belém Efrata?"

(Memorial de Cristo I, Eu venho, 1977.)

* Escritora, membro da Academia Brasileira de Letras


Nenhum comentário:

Postar um comentário