quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Autossuficiência nossa de todos os dias

* Por Mara Narciso

O homem é um ser gregário, e por isso mesmo não deve viver sozinho. Ao nascer é um dos animais mais dependentes, e morreria em poucas horas, caso não fosse devidamente protegido. A sociedade está construída sobre uma distribuição de tarefas e todas as classes de trabalhadores são indispensáveis. Cada um faz uma parcela do trabalho, e assim se vai construindo o mundo, que se edifica sobre os que vieram antes.

A construção pessoal, além de depender dos outros para amparar aquele que cresce, seja a família, sejam os amigos, vai sendo feita à imagem dos pais e professores, que educam e ensinam o caminho do bem (ou do mal, dependendo do caso). Pais não são símbolos de virtude, por definição, mas deveriam ser para se tornarem um bom espelho para seus filhos. Aprende-se a copiar, mimetizar, imitar. Depois vão surgindo as características de cada um. Ainda assim, no inicio da vida adulta ouve-se que se tem de procurar um par, a “tampa do balaio”, para que se complete, para que se torne inteiro. A maioria aceita isso como verdadeiro, e coloca no outro quando não todas, quase todas as expectativas de realização e equilíbrio.

Contraditoriamente, é também ensinada ou estimulada a independência, para que a pessoa possa ser autônoma, completa e livre. Quando o relacionamento sofre uma avaria, é preciso consertá-lo ou abandoná-lo. Acontece a separação, e a dor nesse jogo rasga a carne. Os que estão próximos correm para dizer que a perda não foi ruim, arranjando defeito naquele que foi embora. São atitudes ambíguas. Para que isso não seja dominante, o melhor seria estimular a liberdade e autossuficiência, com a capacidade, se não total, quase total para se viver só. No entanto, lá no íntimo, as pessoas não querem ficar sem ninguém. Quando conseguem, já mudam de ideia. Querem formar outro par.

Mas, quanto à autonomia, nada que se aprende é inútil, desde lavar, passar, costurar, cozinhar, cuidar de crianças, alguma arte ou trabalho remunerado. Saber é moeda corrente, sendo importante conseguir viver só. Ganhar o dinheiro, saber comprar, equilibrar-se nas finanças e tentar poupar para dias mais difíceis. Esse lado é possível de ser aprendido. O complicado é o lado afetivo. A maior parte quer ter um amor, o afeto, o carinho de alguém que não pode ser substituído por filho, pais, ou qualquer parente ou amigo. E dizem as pesquisas que quem tem um bem para chamar de seu vive mais e melhor.

Os que já sofreram de mal de amor, uma decepção mais graduada vão fugir de outra situação amorosa, e principalmente hoje, quando o mundo fez as pessoas mais impacientes, acontece com a maioria o dissabor de um fim. Então, vem a fase madura em que a pessoa se encontra só. Alguns desistiram, mas outros querem encontrar alguém. Ainda assim, quando chega o fim-de-semana, que é o período de expectativa e conseguinte frustração, quando acontecem três noites só e em casa, a pessoa pensa em investir mais para conseguir um amor. Por outro lado, surge a possibilidade da autossuficiência em todos os níveis, seja emocional, afetiva ou sexual, em alguns casos com a sublimação dessa função humana tão pouco compreendida.

É possível viver só, mas é frustrante vivenciar esse vácuo afetivo. Não se quer abrir mão de uma companhia, um abraço, uma palavra de carinho que só um amor pode dar. Quando aflito, é bom se ter alguém. Ajudas continuam indispensáveis. Ainda que se seja capaz de sobreviver sozinho, em relação à sociedade maior, à cidade, por exemplo, é preciso usar o serviço dos outros, por mais habilidoso que se seja. Assim como o mau pagador, que quando quer pagar não tem dinheiro, e quando tem dinheiro não quer pagar, pode-se querer a autossuficiência, e não poder ser independente, e quando se é livre, não se querer sê-lo mais. Sem demagogia, como viver e principalmente morrer sem a presença dos outros?

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   


2 comentários:

  1. Concordo com tudo, Mara. No sentido macro, social, antropológico. Já pessoalmente, devo admitir que em boa parte do tempo sou uma ótima companhia para mim... Abraços.

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  2. Autonomia é bom, mas a um cafuné, quem resiste? Obrigada Marcelo, pela passagem e comentário.

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