sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Ideologia de Orwell na berlinda

O que mais se critica em George Orwell, curiosamente, não é propriamente seu livro mais famoso e conhecido, “1984, embora este tenha servido e ainda sirva de “gancho” para que sua obra literária seja, volta e meia, trazida à baila, tantos anos após sua morte. Foi sua alegada “inconsistência ideológica”, mesmo em se sabendo que ele foi notório e apaixonado ativista de esquerda, que ficou para a posteridade. No meu entender, esse procedimento é injusto. Afinal, Orwell não se limitou a teorizar a propósito dos ideais socialistas, como tantos e tantos fizeram (e ainda fazem). Pegou em armas em defesa de um governo de esquerda (no caso os republicanos da Espanha), na guerra civil espanhola de 1936 a 1938, que resultou na vitória do nazifascismo, representado pelo general Francisco Franco. Mais do que isso, arriscou a vida em defesa do que acreditava. Tanto que foi ferido em combate e escapou por pouco da morte. E isso é mais do que simples paixão: é irrestrita convicção.

Os ataques, muitos sumamente virulentos, vieram (e ainda volta e meia vêm) dos dois extremos, sem que o polêmico escritor e ativista inglês pudesse (ou possa), por motivos óbvios, se defender. Sobre seu livro, curiosamente, pouco se fala. Quando muito, persiste a acusação, mais comum e recorrente, de que a superditadura que descreveu no enredo da obra, jamais poderia ser implantada. Será que não? Já demonstrei, em texto anterior a propósito, que isso não é tão impossível ou improvável como se apregoa. Tomara que eu esteja equivocado. A realidade é que pouca coisa é dita contra “1984”. O foco dos debates continua sendo seu autor.

Um de seus críticos mais ferozes foi o historiador, ativista político comunista e jornalista judeu polonês Isaac Deutscher. Pudera! Esse polêmico intelectual (que faleceu em 19 de agosto de 1967, em Roma) foi, simplesmente, o biógrafo de Leon Trotsky e de Josep Stalin. E quem conhece a obra e, sobretudo, o pensamento político de Orwell sabe o quanto ele se opôs ao stalinismo e, sobretudo, ao seu mentor, ao  perverso ditador responsável pelo extermínio de cerca de vinte milhões de seus conterrâneos. Sequer considerava a União Soviética um regime socialista, da maneira como entendia o socialismo. Enxergava-a como mera ditadura, sem preocupações ideológicas específicas. Ou seja, algo um tanto quanto parecido com a tirania do “Big Brother” de “1984”, embora jamais tenha sugerido, ou sequer insinuado, que pensou em Stalin e no stalinismo ao elaborar seu enredo.

Deutscher, como seria licito de se esperar, não morria de amores por Orwell. Não se poderia, portanto, esperar dele isenção ao analisar seu desafeto. Entre outras acusações que fez ao adversário, a mais grave foi a de que ele plagiou o romance “Nós”, do russo Eugene Zamyatin, a quem igualmente abominava. Ocorre que esse escritor, perseguido pelo regime de Stalin, exilou-se na França, de onde não poupou denúncias ao ditador soviético. Embora não haja a mínima prova, ou mesmo o mais reles indício de que Orwell tenha, mesmo, plagiado o citado livro, muita gente ainda acredita nessa acusação de Deutscher e a repete, como papagaio. Como se vê, os adversários ideológicos do autor de “1984” não o poupam, mesmo passados mais de 64 anos da sua morte.

Uns, acusam-no de plagiador. Outros, de ter sido delator de intelectuais comunistas, em uma época em que ter essa convicção ideológica era algo sumamente perigoso, notadamente no auge da chamada Guerra Fria. Orwell, porém, não foi nem uma coisa e nem outra. Nem plagiou livro algum e nem delatou comunistas. A lista que elaborou (e o fez de fato) foi feita a título de irresponsável brincadeira com amigos embora, não se saiba como, acabou parando em mãos indevidas, no caso, o Departamento de Pesquisa de Informações (IRD) do Ministério de Relações Exteriores da Inglaterra. Ele tinha uma idéia de socialismo que, talvez, fosse um tanto romântica, sabe-se lá. Associava-o à democracia, embora seus adversários considerem ambas coisas incompatíveis.

Os defensores de Orwell argumentam que vários países da Europa contavam e contam com governantes socialistas, todos eleitos pelo voto direto e que, portanto, são democráticos. Ao que seus adversários contrapõem afirmando que esses líderes podem até ter essa ideologia. Mas que as sociedades nacionais que governam não são socialistas. Em contrapartida, a China, embora tida e havida como paradigma do socialismo, não pode ser considerada, nem mesmo forçando a barra, “democrática”. É verdade que se trata de um regime de esquerda sui gêneris. Afinal, adotou uma economia de mercado, que fez com que progredisse e continue progredindo de forma notável. Seu regime, do ponto de vista político, todavia, não tem nada que lembre, sequer remotamente, mesmo que um arremedo de democracia. Fazer oposição, ali, é crime, não raro punido até com pena de morte. Todavia, economicamente, é o mercado que dita as regras de suas empresas, a maioria privadas.

O que será que Orwell pensaria da China contemporânea? Suponho que se oporia a ela, a despeito da sua economia ser “capitalista”, como a dos países democráticos. Certamente seu “socialismo” é incompatível com o que ele sonhou. Seu ideal seria factível? Para seus críticos, tanto de esquerda quanto de direita, não. Para Deutscher, faltava-lhe, sobretudo, “senso histórico e compreensão psicológica da vida política”. Faltavam mesmo? É mister que se destaque que, passados mais de 64 anos de sua morte (ocorrida, em Londres, em 21 de janeiro de 1950), suas críticas, tanto ao stalinismo (ou seja, ao totalitarismo de esquerda), quanto ao nazifascismo, de extremíssima direita, permanecem coerentes e, portanto, válidas. Dedico tanto espaço a esse aspecto por ser o que mais se comenta quando o nome de Orwell vem à baila, seja em que contexto for. É, portanto, análise pertinente e que se impõe.

Boa leitura.


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