domingo, 27 de julho de 2014

Flávio e Elza

* Por Dinah Silveira de Queiroz

Cobria-se a Serra de flores. Correu primeiro um balbucio de primavera. Seria já a florada? Botões, aqueles pequenos sinais? No meio dos bosques escondidos entre os montes, o amarelo e o vermelho salpicavam, abriam no verde sorridente espanto. Em lugares mais resguardados, mais favorecidos, em breve surgia a neve florida cobrindo as pereiras e transformando, enriquecendo a paisagem. E logo também floriram os pessegueiros. Junto das favelas, nos parques dos sanatórios, rodeando os bangalôs, à beira das águas mansas, a florada em rosa e branco apontou finalmente, luminosa, irreal.

Perto do pequeno lago em que se debruçavam as pereiras alvas, encantadas, o pintor armou o cavalete. Tocados de primavera, os galhos roçavam a água que reproduzia a fila das árvores. Amarrada à margem, a pequena canoa envernizada, vazia, estava juncada de flores que o vento carregara.

Elza surpreendeu Flávio pintando com aquele entusiasmo e fervor. Tocou-lhe no ombro.

Espere um pouco.
- Você pediu licença para pintar aqui?
- Claro, disse Flávio sem olhá-la. Deixe-me acabar uma coisa.

Elza passeou uns momentos pelas alamedas, depois voltou, esteve a contemplar Flávio de costas. Vestia malha acinzentada descobrindo a nuca vermelha. As mangas arregaçadas deixavam ver o braço queimado de sol, com veias salientes. Elza aproximou-se, olhou-o de perfil. Sempre aquela maneira nervosa de morder o lábio! Antes lhe dava ele tanta impressão de força, de saúde. Mas agora apreendera o desmentido daquele empastamento, daquelas rugazinhas quase invisíveis junto dos olhos, daquela curva dos ombros cansados precocemente.
- Que é que você olhando?
- Você.

Levantou-se, desarmou a tela, guardou a tinta e pincéis, vagarosamente, limpou os dedos. Enxugou o rosto suado.
- É mesmo maravilhosa a florada aqui. Você tinha razão.

Elza apanhou um pequeno galho, fez uma coroa, colocou-a em cima da cabeça.
- Você já viu grinalda mais linda?
- Linda, disse ele, olhando-a muito sério. Tão linda que receio que desapareça. Parece que a estou vendo, coroada de flores, subindo um altar...

Apanhou um galho, outro, outro mais, fez um imenso ramo, encheu-lhe os braços de flores.
- Não se mova. Assim.

Esteve a contemplá-la. Depois, subitamente, mudou de humor, encostou-se a um pinheiro com um repentino enervamento.
- Que é que você tem, Flávio?

Atirou as flores ao chão. Chegou-se a ele, muito perto. O rapaz desviou os olhos.
- Nada, disse por entre dentes. Nada a não ser um cansaço... Cansaço de mim mesmo, que de vez em quando me vem. É preciso muito esforço para construir uma lenda e viver dentro dela... Já estou cansado.
- Lenda por que, Flávio? Se a doença o impediu de seguir a carreira escolhida, também não criou em você um artista, que com certeza não teria existido, se não tivesse esta vida isolada?
- Artista...

A sua voz soou amargamente.
- Artista... Viver aqui sonhando que faço obras-primas. Prodígio de auto-sugestão! E ainda mais...

Riu um pouco fino.
- Construir em você uma outra criatura, afeiçoar-me a ela sem querer olhar, ver afinal a verdadeira...

Os lábios de Elza tremeram. Esperara sempre por aquilo, mas apesar disso, fugiu-lhe a calma.
- Por que não quer a verdadeira? Será assim tão cheia de defeitos, tão incompleta para ser querida?

Sentiu-se atingida dolorosamente no íntimo. Com voz aguda prosseguiu:
- Tudo porque sarei. Desde que o Dr. Celso apregoou a minha cura, que vocês me detestam. Sim, não negue. Para quê?

Lágrimas queimaram-lhe as faces.
- Você e Lucília... Com toda a certeza julgam que estou cometendo uma traição. Quando falo em minha casa, no prazer de rever as minhas criaturas queridas, ofendo a vocês...

Com a ponta do sapato Flávio esmagava pequeninas plantas, num movimento obstinado.
- Elza...

Pegou-lhe o braço.
- Quer que me alegre, me envaideça...

Riu excitado, nervoso.
- ... por mandá-la de volta para o seu noivo?
- Você nunca falou nele.
- Ah... era um perigo longínquo.

Ainda é, disse Elza, penetrando os olhos de Flávio. Está longe. Está na Inglaterra.
- Mas volta, volta breve para você. Como a imaginei há pouco... Numa igreja toda iluminada, linda como uma imagem e pelo braço dele...

Olhou-a de perto com os olhos apertados, maldosos.

Beijos não deixam marca, felizmente para você.
- Flávio!

Elza empalideceu.
- Por que mudou assim? Por que esse ódio?

Teve uma imensa vontade de fugir. Sentiu a vista turva. Voltou-lhe as costas. Encaminhou-se para o portão. Pisava um mundo fantástico e desconhecido, com uma angústia de fugitiva. Quando atingiu a saída, Flávio puxou-a pela mão. Elza resistiu. "Ouvira demais, não havia dúvida", dizia com uma voz fria que a si mesma assombrava.
- Escute... Você há de se arrepender a vida toda, se não me ouvir.

Ela resistia, procurava retirar a mão, vibrante, nervosa, toda rosada. Ele largou-lhe a mão. Elza abriu resolutamente o portão, mas, antes que passasse à estrada, sentiu-se presa pela cintura.
- Não adianta teimar, disse Flávio. Você tem que me ouvir.

Guiou-a até junto a uma pereira florida, Encostou-a nela. Com as mãos coladas ao tronco da árvore, junto dos seus braços, prendeu-a:
- Sei a idéia que fazia de mim... Um fraco. Um fraco de corpo e de espírito. E está muito admirada com a minha atitude. Então você não compreende como essa separação é cruel, é desumana? Crê que eu não tenho nervos? Vê-la de volta para retomar a mesma vida de há um ano...
- Deixe-me.

Os braços e Flávio caíram.
- Você não sabe lutar pelo que quer? Você me quer realmente? disse Elza com profunda emoção.
- Quero-lhe, como nunca foi nem será querida por outra pessoa.

A sua voz se tornava mais lenta, bizarramente pausada, e como que envelhecida.
- Toda a minha vida, toda a minha esperança eu ponho em você. Não tenho ninguém que me queira, e ao cabo de tanto tempo minha família já se distanciou de mim. Tenho amizades que duram pouco. Iludi-me a mim mesmo criando em você uma companheira de solidão. Nada lhe podia oferecer senão esse mundo de amor e de ternura disperso nos outros homens, mas que eu conservo intacto para você. Afundei-me tanto na nossa felicidade futura que a vivi quase. Agora... vejo as coisas friamente. Você curada, pronta a retomar o fio interrompido das suas relações, das suas amizades, e eu aqui... preso para sempre.

Contraiu a fisionomia, cerrou os punhos, sacudiu os ombros, encostou-se ao lado oposto da árvore, com a cabeça repousando nos braços cruzados.

Elza tocou-lhe no ombro.
- Você há de ficar bom. Há de descer um dia curado. Seremos felizes como toda a gente.
- Não sente o que diz... Não sente...

Olhou-a com os olhos vermelhos.
- Deixe-me descer com a lembrança do seu carinho, da sua companhia. Espere um tempo... Talvez possa descer, esteja curado. Talvez eu tenha que subir, adoeça de novo.

Um pequeno galho em que o vento bulira prendeu o cabelo de Elza. Ela puxou a cabeça, desprendeu-se. Uma chuva de flores caiu sobre eles. Flávio esteve a vê-la agitando os cabelos, sacudindo o vestido, atirando as flores ao chão. Tomou-a bruscamente nos braços. Inclinou a cabeça, olhou de perto, cada vez mais perto, aqueles lábios úmidos que se descerravam. Esteve assim, sentindo-lhe a respiração e contemplando o rosto adorado. Uma abelha zumbiu pertinho. Ele inclinou-se ainda mais, ia tocar naqueles lábios que esperavam o beijo, mas largou Elza subitamente.
- Não devo beijá-la. Vamos embora.
(Floradas na serra, capítulo 39, 1939.)


* Escritora, membro da Academia Brasileira de Letras 

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