domingo, 29 de junho de 2014

Diário de viagem ao Maranhão (I)


* Por Risomar Fasanaro


Há pelo menos dez anos tentava conhecer um pouco do Maranhão. Mas não conseguia e ia sempre parar em outro lugar: Recife, Natal, Belém, Manaus, Ilha do Marajó. E ficava sempre aquele sentimento de não ter ido aonde queria realmente ir. Mas agora consegui. Fui conhecer um pouco bem menos do que queria, de São Luís, dos Lençóis Maranhenses e de Alcântara.

Fiz questão de pedir à agência para hospedar-me em uma construção antiga. Informaram- me que poderia me hospedar na Pousada do Francês. Um casarão do século XVIII, tombado pelo patrimônio histórico. Havia hotéis mais confortáveis, se eu quisesse, e insisti: quero um lugar onde encontre um pouco do pó de séculos passados, algum limo de outras eras, sombras de passos de pessoas que nunca vi, nunca ouvi. E foi para lá que fui.

Antes deve ter morado ali algum francês, imagino, o que deu nome ao local, depois, disseram-me na pousada, se transformara em um cortiço. Padres compraram a propriedade, restauraram-na, e agora tornou-se um dos hotéis mais simpáticos da cidade.

Era madrugada quando chegamos, mas isso não impediu de me encantar com a beleza do casarão. Logo na entrada vejo um gramofone em cima do balcão e já viajo pelo tempo, imaginando se ali alguém colocou um disco de Chiquinha Gonzaga. Dizem meus primos, ser nossa ancestral, o que justificaria, para os meus, minha forma rebelde de ser.

Acredito piamente nessa história, primeiro porque aumenta minha auto-estima, segundo porque em uma entrevista pela TV ouvi Rosa Maria Murtinho dizer que Djenane Machado é descendente dela, e como há muito tempo escuto de meus primos que a atriz é nossa prima em terceiro ou quarto grau, a “lenda” confere.

Relógios antiqüíssimos marcam o tempo. Tempo que naquela terra corre com suavidade. Uma lentidão que lembra o deslizar do tempo das sinhazinhas com suas longas saias rodadas, a caminhar com cuidado pelos irregulares pisos de pedras. Mas nesse primeiro dia apenas vou dormir. E tenho um sonho altamente significativo. Coisa para ser analisada por terapeuta junguiano ou por algum mestre esotérico. Outra vida? Outra reencarnação? Não sei. Como disse Guimarães Rosa em “Grande Sertão: veredas“ eu quase de nada sei, mas de muita coisa desconfio”.

Levanto cedo, tomo café com frutas, sucos, bolinhos de tapioca fritos e bolo de mandioca quase igual ao que minha mãe fazia, porque vocês sabem, nem a magia de uma viagem sonhada há tanto tempo, supera as receitas da mãe da gente.

Caminho pelas ruas, junto com Edilena, minha amiga de longa data. O primeiro sentimento que me toma é o de decepção. Ao redor da pousada, casarões coloniais estão desmoronando, me emociono vendo aquilo, meus olhos se enchem de lágrimas, e pergunto aos moradores quem é o secretário de Cultura e se é fácil falar com ele. Dizem que sim, e logo depois, na volta, consigo a adesão de outros hóspedes para formar uma comissão e ir falar com ele. Mas temos calma, não vamos por atalhos, que nem sempre são os melhores caminhos. Ainda vimos muito poço da cidade, não podemos nos precipitar.

Fotografo os azulejos dos mais diferentes padrões. Quando surgem alguns com padrão diferente, Edilena me chama a atenção, para fotografá-los. Eles sempre me encantaram. Durante anos comprei revistas que traziam fotos de São Luís e de Alcântara por causa deles. Ao passar as fotos para o computador, meu filho se espanta: “mas, mã, (é assim que ele me chama) você tirou todas essa fotos de azulejos?” “É... e receio ter me escapado algum padrão diferente”. Não por acaso tento me tornar uma ceramista.

As portas, janelas, telhados são de uma beleza sem fim. Fico sabendo que além de eira e beira; ali existem tribeiras. São telhas colocadas umas sobre as outras e que denotam as posses materiais dos proprietários dos casarões e sobrados.  

As casas onde a beira do telhado é de apenas uma telha indica que o proprietário tem pequenas posses, se há duas camadas de telhas são chamadas de eira e beira; e indica que são pessoas de mais posses; já os que têm três camadas de telhas, chamadas tribeiras, são os grandes proprietários, a classe dominante.

As estreitas ruas de pedras me levam a pensar quanto suor e sangue de escravos escondem em suas reentrâncias. É domingo, a cidade está deserta e as raras pessoas que encontramos nos previnem que aquela região é perigosa, e que naquela região acontecem muitos assaltos, e continuamos nosso passeio, tentando esconder a máquina fotográfica.

Já é hora do almoço e nossa curiosidade nos leva a pedir arroz de cuxá com peixe frito e pirão, um arroz feito com uma verdura chamada vinagreira, camarão seco, gergelim torrado e muitos frutos do mar. E sem exagero, jamais saboreei arroz tão delicioso.

À tarde fomos circular pela cidade, guiados por Rai, a guia. Uma moça loira, muito simpática, e apaixonada pela história de sua terra. Chovia muito, por isso alguns lugares só vimos do ônibus, mas logo depois a chuva cessou e pudemos descer. Ela nos levou ao Beco Quebra Bunda, assim batizado porque ali as pessoas caem muito, depois mostrou o Beco da Bosta, local por onde passavam os escravos carregando grandes baldes com as fezes dos senhores, para jogar no mar.

Fizemos uma parada para tomar sucos, refrigerantes e conhecemos o guaraná “Jesus”, refrigerante cor-de-rosa, gostoso demais, completamente diferente de todos os refrigerantes que conhecemos no sul, e que alguém no bar nos informou, há um contrato com a Coca-Cola que impede a sua venda aqui e em outros estados. Coisas que nunca vou entender.

A guia nos conta que no ano passado seu filho teve dengue hemorrágica e foi graças àquele guaraná que ele conseguiu aumentar o número de plaquetas sanguíneas.   

Continuamos nossa caminhada e nos detivemos em frente ao Teatro Arthur Azevedo. Construído em 1815 por dois comerciantes portugueses, com o nome de Teatro União, é o segundo teatro mais antigo do Brasil. Foi inaugurado em 1817; em 1852 passou a se chamar Teatro São Luís; e por causa dos padres Carmelitas as obras foram paralisadas. Os religiosos não aceitavam a construção de um edifício profano no Largo do Carmo, próximo a um sagrado (Convento do Carmo). Por isso, para não desgostar os padres, os engenheiros inverteram a frente do Teatro para a Rua do Sol. Em 1922 foi rebatizado com o nome do teatrólogo ludovicense, Arthur Azevedo. Patrono justo, já que ele consolidou o teatro de costumes no Brasil e é considerado pelos críticos o principal autor do teatro de revista.

A sua capacidade é de 750 espectadores e possui estrutura que comporta tecnologia de aparelhagem de som, iluminação e vídeo dos mais avançados.

Tivemos, Edilena e eu, a felicidade de estar em São Luís, capital da Cultura, título mais do que justo dado a uma cidade que transpira cultura e arte  por todos os cantos, exatamente na semana em que se comemorava a “Semana do Folclore”, tema que tratarei na próxima semana. Alguém poderia estar mais feliz do que nós duas?

* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora,  autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.

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