sábado, 21 de junho de 2014

A distância, Nossa Senhora e as guerras

* Por Marcos Alves

O envolvimento das pessoas com o sofrimento alheio muda conforme a distância e, claro, a conveniência. Notadamente, mais essa do que aquela. Nem mesmo a revolução digital foi capaz de mudar isso. Talvez tenha até acentuado. A conveniência aqui pode ser compreendida como o conforto de não ter nada ou muito pouco a perder, seja em termos materiais ou afetivos. No Brasil, o interesse pelas bombas que caem e desesperam as famílias de Beirute, assim como pelos mísseis do Hezbollah que explodem ao norte de Israel  perde para qualquer camarada razoavelmente vestido deitado na calçada ali na esquina. Alguém sempre acaba parando para dar uma mão ou chamar a polícia.

Dia desses, chegou a Varginha, Minas, um homem de 35 anos numa cadeira de rodas. Ele pediu para ser chamado de "Gibão caminhoneiro". Ficara paraplégico depois de um acidente na estrada. Chegou empurrando a cadeira, contou que estava a cumprir uma promessa. Foi na cadeira, disse ele, que fizera o trajeto de mais de 3 mil quilômetros entre Manaus, no Amazonas e Aparecida, no interior paulista. Se dizia abençoado por ainda estar vivo e se locomover. Estava grato por ter braços e a cabeça em ordem. À volta, olhares de admiração diante do feito, de fato, digno de reconhecimento.

"O sofrimento humano visto de longe perde sua dramaticidade", escreveu Eduardo Giannetti. Quando a guerra esquenta lá fora, lemos os jornais com apreensão, mas atrevo-me a afirmar que, sem contar os imigrantes e pessoas do círculo familiar de israelenses e libaneses (ou palestinos) que estão no Brasil, pouca gente aqui realmente sofre com a guerra de lá. A nossa guerra é outra: bandido contra polícia, polícia virando bandido, bandido político contra tudo e a favor de si próprio. E a gente só levando bala nas costas.

Escrevo de Minas e posso afirmar que, se o PCC ataca em São Paulo, ficamos bem mais  preocupados. Eis que entra em cena o fator conveniência, ajudado evidentemente pela distância. São Paulo é aqui do lado, mas longe o bastante para evitar que as balas do PCC sejam uma ameaça real. Mesmo em Belo Horizonte, onde a violência também assusta, a gente no fundo, no fundo ainda se permite uma sensaçãozinha de alívio. E quem há de negar que a recíproca é verdadeira?

É o mesmo raciocínio que leva certos belo-horizontinos, paulistanos e cariocas a trocar a loucura dos grandes centros pela pseudotranqüilidade do interior. Pode dar certo e a vida ficar mais leve, menos urgente. Mas também pode dar errado. Muita gente sai de BH, Rio e SP para ser assaltado no interior.

Uma praga antiga, realimentada em nossos tempos pelo medo. E  pelo individualismo. O meu, primeiro, licença. Quando o meu pote estiver cheinho, o do parceiro... Olha, ele veio de cadeira de rodas! É um devoto de Nossa Senhora Aparecida! Mas, o que isso significa na vida de cada um de nós? Tudo bem, passou na TV e isso dá um alcance maior, indiscutivelmente. Mas sabemos que amanhã tem jornal de novo. A criminalidade no Brasil, a guerra no Oriente Médio. Tudo e nada de novo.

Como disse Chekov, "Pensais honestamente, e por isso odiais o mundo todo. Detestais os crentes porque a fé é um indicador de estupidez e de ignorância; e detestais os descrentes porque não têm fé nem ideal. Odiais os velhos pelas suas mentalidades ultrapassadas, e os novos pelo seu liberalismo". Vivemos em tempos de conveniência. Faltam exemplos, valores.

O brasileiro é solidário mas preguiçoso, politicamente. Pudera essa proximidade com o outro (na cadeira de rodas também, só que tem mais gente precisando) fosse encarada como uma real oportunidade de compreender que a nossa guerra é do tamanho da desigualdade social no Brasil. A certos políticos falta vergonha na cara...bem, não sei onde ouvi ou li que as pessoas não podem dar aquilo que não têm. Eles não têm vergonha. Ao menos alguns foram parar na cadeia. Saíram depois, mas experimentaram a tortura psicológica do xilindró.

A nós, resta viver aqui. Não, não tenho nenhuma boa fórmula, não sou expert em segurança pública, não sou político e tampouco me considero visionário, longe disso. Só sei que enquanto os poderes e as pessoas hesitam a violência só faz aumentar. Ah, e essa campanha de voto nulo é, como disse o Gabeira, jogar a favor dos bandidões e pelegos que assim ficam mais perto do congresso na próxima legislatura. Mas ainda tenho fé. Que Nossa Senhora nos ajude. E ao romeiro "Gibão" em  suas andanças.

* Marcos Alves é jornalista e diretor de vídeos.

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