quarta-feira, 26 de março de 2014

O que posso lhe dizer?

* Por Mara Narciso

Uma criança se machuca ao cair. Quem está próximo corre para acudi-la, acalentá-la, dizer-lhe que não foi nada, fazer-lhe um carinho e afirmar que logo vai passar. Caso a criança chore, receita-lhe um remédio, que é recusado, ou oferece-lhe um doce, sinônimo de amor. Assim, aprendemos que a dor é feia e deve ser minimizada, negada, esquecida depressa.

As mulheres podem chorar desde que sejam discretas. Os homens, embora chorem, ocultam sentimentos e desenvolvem doenças. Dores antes restritas ao setor privado, hoje estão estampadas nos telejornais, escancaradas para todos verem, pelos mais diversos ângulos, em closes monumentais, assim como a face da mãe da criança estuprada e morta no exato instante em que o caixão desce à sepultura. Nesses casos ultra dramáticos, não é preciso falar nada. Abraçar e chorar juntos é mais autêntico.

Viver é perder e ganhar. Muito se ganha, e muito se perde. Há períodos em que a conta se equilibra, mas há outros em que as perdas excedem as coisas boas, e entra-se numa espiral descendente. De acordo com a medicina holística, quando o equilíbrio corporal e mental se quebra, segue-se um ciclo até que volte a reequilibrar-se. Há ocasiões em que tudo desmorona, surgindo pequenas e grandes doenças em sequência, e só depois de um tempo, a rotina retorna.

As perdas materiais, nas enchentes, por exemplo, causam consternação, pois cada um se coloca no lugar daquele que se encontra desalojado, com seus pertences, seu canto e sua segurança destruídos. Os míseros objetos e o lar dão tranquilidade, e perdê-los todos gera pavor.

Nos roubos e assaltos, quando se tem perdas financeiras, mas se preserva a vida, outra situação extrema, nem se cogita em lamentar pelo bem material. Valoriza-se a manutenção da existência e pronto. Ainda assim, mulheres e crianças choram, e aparecerá alguém que dirá que aquilo foi quase nada, diante do horror que poderia ter sido. O discurso de consolo tenta reduzir as perdas. Este é o comportamento social padrão e institucionalizado.

Outras derrotas, como perda de concurso, para o qual se teve grande empenho, ou ainda as loucuras nas apresentações das dissertações ou teses, quando a tensão chega a um limite tal que o doutorando parece estar decidindo o destino do planeta, aparece quem diga o óbvio para acalmar o cidadão. Não os culpo. A sociedade habituou-se a isso.

As pessoas próximas se sentirão capazes de quantificar as perdas, sejam bens, ou pessoas que se afastaram, por brigas, por exemplo, entre irmãos ou amigos ou namorados. “Ah, isso não foi nada. Logo você irá superar isso”. Morreu alguém, a mãe, por exemplo, depois de uma penosa enfermidade. Para acalentar o recém-órfão, alguém fala que sabe o que é aquilo, que também já perdeu a mãe, e se for chato o suficiente, dirá detalhes de como foi a moléstia que a vitimou, ali mesmo no velório alheio.

As situações de consternação exigem visita, sendo obrigações sociais prementes. É preciso ir, é urgente se solidarizar, mas alguns pensam contritos: eu acho que não vou não! O mal de amor, quando a pessoa é trocada por outra, e está naquela situação de “tremenda dor-de-cotovelo”, os amigos enchem o ausente de defeitos, dizendo que quem foi abandonado merece coisa melhor.

No lugar de tentar diminuir a perda, o que é menosprezar a dor do outro, melhor é garantir o valor daquilo que se foi. É preferível afirmar que o que foi perdido é imenso, insubstituível, irrecuperável, e que tem é de chorar mesmo, lamentar-se, gritar, rasgar-se de dor, até o limite da integridade das suas carnes e sanidade mental. Agarre-se a isso, faça da dor a sua razão de viver. Sofrer não é feio. Não faça besteira, e chore o tempo que for necessário. Nada de engolir lágrimas, de inventar força. Para quê? Desmanche-se de dor, fira-se ao extremo, curta seu luto o tempo que quiser. Não finja. Ninguém tem o direito de medir o sofrimento alheio. O pranto consola, enquanto o psiquiatra receita um antidepressivo, medicação com propriedades terapêuticas garantidas, até que a dor, enfim, desapareça.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   


2 comentários:

  1. O título está perfeito para o desenvolvimento do raciocínio, pródigo de reflexões. As frases feitas, protocolares a cada ocasião, têm sempre pouco efeito prático, mas são ao mesmo tempo imprescindíveis às circunstâncias. Estranha humanidade. Somos humanos, choremos.

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  2. Mesmo falando sozinha, dou um não às convenções que nos proíbem chorar e sentir dor. Eu penso um pouquinho diferente. Obrigada pela passagem gentil de sempre, Marcelo.

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