segunda-feira, 31 de março de 2014

Inventário de perdas

* Por Aleilton Fonseca

O silêncio do delator, romance de José Nêumanne Pinto, retoma a linha ficcional do inventário político-ideológico da geração 60, no Brasil, que enfrentou a ditadura militar (1964-1985), respirou a arte pop e o cinema, embalou-se no rock-and-roll e na MPB, aplaudiu as barricadas estudantis parisienses e adotou os comportamentos da contracultura. Coube à turma mais intelectualizada dessa geração - jornalistas, escritores, artistas, professores, militantes políticos - escrever, discutir e viver a memória daquela época ao mesmo tempo rica, confusa e conturbada. Na década de 80, com a abertura política, as livrarias foram inundadas por dezenas de livros de depoimentos, poesia e ficção, escritos por autores oriundos dos grupos que sofreram as agruras dos anos de chumbo da ditadura. Mas nenhum deles tornou-se o livro definitivo daquela geração.

O silêncio do delator conta a trajetória de João Miguel, um morto que fala sem peias durante todo o seu velório. Só o narrador tem acesso à consciência do defunto e inscreve sua fala no tecido ficcional. Nesta condição, João Miguel promete esclarecer a sua história e revelar os segredos de seus companheiros: ''Agora, sim, posso falar de nosso malogro''.

Nêumanne diferencia-se da maioria dos autores dessa temática. Ele adota uma estratégia francamente ficcional, ao dar o poder de fala a um morto, em pleno velório, fazendo-o dialogar com o narrador principal, espécie de moderador dos diversos discursos que contracenam ao longo do enredo. Ora, essa aplicação contemporânea do célebre procedimento machadiano, em Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), surte um excelente efeito operatório, abrindo espaço para discursos desabusados, versões e contradições, reflexões político-sociológicas e, sobretudo, observações metanarrativas. São divertidas e pertinentes as intromissões do morto na escrita do romance, ao fazer reparos e comentários jocosos e analisar detalhes, criticando a técnica do narrador principal.

A ironia e a auto-ironia dão tempero ao relato, pois permitem a relativização das verdades, dos ideais, das crenças e das ações individuais e coletivas. Os pretensos heróis da resistência político-cultural dos anos 60-70 riem de si e de suas fraquezas e limitações. Um riso angustiado, com uma ironia tragicômica, mas que compõe um quadro realista, sem idealizações anacrônicas.

Em certo sentido, João Miguel simboliza o alter-ego coletivo. Nele e com ele, estão mortos os ideais de sua geração. Já o narrador principal é a outra face desse alter-ego. Se o narrador-vivo ainda contemporiza com algumas idéias e situações, ao morto, despido de qualquer chance de ação, cabe as avaliações mais ferinas. Sua fala é o antídoto da má-consciência que, inadvertidamente, pode persistir nos discursos e atitudes dos demais, ainda comprometidos com as etiquetas e os interesses da vida.

Em O silêncio do delator, a alternância do foco narrativo é fundamental, pois cadencia a trama e equilibra o pêndulo entre a realidade e a ficção. O diálogo tenso, irônico e arrevesado dos narradores, o vivo e o morto, proporciona um debate duro e esclarecedor, traça o perfil ideológico e existencial das personagens, entremostra seus acertos e equívocos, perdas e ganhos, inconseqüências, veleidades e contradições.

Este romance é, sobretudo, um inventário de perdas: da inocência, da crença, do ideal, da certeza. As personagens persignam-se sobre o morto - símbolo do malogro. A morte expõe sua trajetória ao lado dos companheiros - e o seu silêncio delata o grande teatro vivido coletivamente por uma geração paradoxalmente vitoriosa na derrota.

José Nêumanne Pinto conduz bem a sua escrita, pois adota, com acerto, os procedimentos ficcionais que dão relevo aos fatos da realidade, elevando-os a um nível de complexidade e de significação para além dos registros documentais e jornalísticos. Trata-se de uma narrativa amarga e pessimista, mas escrita com ironia e humor desabusado, para desnudar a alma de uma geração que viveu intensamente seus ideais e suas frustrações, deixando marcas na história social e na cultura do século 20.

* Aleilton Fonseca é escritor, Doutor em Letras (USP), professor titular pleno da Universidade Estadual de Feira de Santana, membro da Academia de Letras da Bahia, da UBE-SP e do PEN Clube do Brasil.




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