quarta-feira, 19 de março de 2014

Arciszewsky e Nassau, um confronto de vaidades

* Por Leonardo Dantas Silva

Em 1638, um ano após a sua chegada ao Brasil, o Conde João Maurício de Nassau resolveu conquistar a cidade de Salvador, capital da América Portuguesa, partindo do Recife, em oito de abril no comando de uma esquadra de 30 barcos, 3.600 soldados e 1.000 índios tapuias, não contando com tão grave surpresa por conta do seu intento.

O Governador-Geral do Brasil Pedro da Silva, ao perceber a presença da esquadra holandesa nas costas da Bahia de Todos os Santos, entregou o comando militar da cidade ao Conde de Bagnuolo [1]. Este, com auxílio dos índios de D. Filipe Camarão e dos negros de Henrique Dias, apoiado pelo bispo D. Marcos Teixeira que pessoalmente comandou a guerrilha, brilhantemente defendeu Salvador do assédio.Cuidadosamente fortificada desde 1625 e com grande bravura defendida pela guarnição e por civis, a cidade ofereceu tenaz resistência, e João Maurício somente fez a desagradável descoberta “que os sitiados eram mais fortes em número que os sitiantes”.[2]

Por essa altura, o Conde de Nassau, ao pressentir que os soldados não podiam cavar trincheiras em razão da natureza rochosa do solo e que o bombardeiro da artilharia tornava-se inoperante, reduzia-se a mero desperdício de munições, comandou pessoalmente o assalto da noite de 17 para 18 de maio, no que foi rechaçado bravamente pelas tropas de defesa. Tal iniciativa resultou em grande número de mortos dos dois lados, o que obrigou o conde a decretar uma retirada sorrateira da Bahia, aproveitando a escuridão da noite de 25 para 26 de maio, levando em seus navios alguns feridos, e registrando a perda de 237 homens de sua tropa de elite.

Em carta aos diretores da Companhia das Índias Ocidentais, o Conde de Nassau justifica a derrota sofrida por conta da superioridade numérica dos espanhóis e portugueses internados na Bahia. Como consolo, apresenta a presa de 400 escravos negros e uma considerável quantidade de açúcar, cujo produto cobriria, mais ou menos, a totalidade das despesas da expedição.

O frustrado ataque à capital da Bahia foi documentado iconograficamente, em mapa pormenorizado do recôncavo da Bahia de Todos os Santos, trazendo em tamanho reduzido uma planta da cidade de São Salvador, de autor desconhecido, e por Frans Post, respectivamente nas lâminas de n.º 31 e 32, da obra de Gaspar Barlaeus (1647). Nesta última aparece o local do desembarque trazendo ao fundo a cidade de São Salvador, defendida pelos fortes Santo Antônio (b), Santa Maria (c), do Rosário (f), São Pedro (g), São Filipe (h) e São Bartolomeu (i), registrando-se ao fundo a ilha de Itaparica.

Após tal derrota, o Conde de Nassau vem implorar por reforços ao Conselho dos XIX, como se depreende de sua carta de seis de outubro de 1638, transcrita em parte por Hermann Wätjen em seu livro:

"Com os olhos ardendo temos nestes últimos meses alongado a vista sobre o mar, a ver se chegam finalmente esperados socorros. Tudo em vão, infelizmente, e assim se vão escapando excelentes oportunidades de causar danos ao inimigo [...] Para preenchimento dos claros abertos por perda e extravio, carecemos imprescindivelmente de 3.600 homens".

A fogueira das vaidades 

O socorro solicitado pelo Conde de Nassau foi enviado pelos diretores da Companhia em forma de presente de grego. Em vez dos 3.600 solicitados, de Amsterdã lhe mandaram 1.600 soldados, sob o comando do coronel polonês Christoffel d’Artischau Arciszewsky.

Para isso, fora aquele militar alçado ao posto de General de Artilharia, com instruções para fiscalizar a administração do Brasil Holandês. Como se recorda este mesmo oficial, a chegada de João Maurício a Pernambuco, em 1637, entrara em rota de colisão com os interesses do recém-nomeado Governador-Geral do Brasil Holandês. O seu surgimento no cenário, nesse momento crucial, após o fracasso da expedição da tomada de Salvador, parecia estar revestido da desconfiança do Conselho dos XIX para com a administração de João Maurício.

Como se sabe era Arciszewsky um nobre polonês, cioso de suas qualidades de militar e de intelectual, que, em 1624, aos 32 anos, se junta ao exército do conde príncipe Maurício de Orange-Nassau (1567-1625), e cinco anos mais tarde (1629), viaja para o Brasil, sob o comando do almirante Hendrick Corneliszoon Lonck, a serviço da Companhia das Índias Ocidentais.[3]

Depois da vinda de [João] Maurício, no entanto, Artichofsky [sic] se sentiu tão diminuído e se julgou tratado com tanta injustiça que resolveu regressar à Holanda, fazendo-o nos fins se 1637.[4]

Para melhor compreensão acerca da semelhança de nomes e de títulos em nossa narrativa, o conde príncipe Maurício de Orange-Nassau (1567-1625), aqui citado, era o filho de Guilherme, o Taciturno (1533-1584), este por sua vez chefe da revolta que separou os Países Baixos do reino de Espanha.

Era Guilherme, o Taciturno, um nobre originário da casa de Nassau-Siegen, nascido no condado de Dilemburgo em 24 de abril de 1533, que, por nomeação de Filipe II (de Espanha) vem a assumir as funções de stathouder das províncias da Holanda, Zelândia e Utrecht, transformando-se depois no fundador da Casa de Orange. Ao ser assassinado em 1584 deixara ele quatro filhos, originários dos seus quatro casamentos. Com a sua morte, a sucessão da Casa de Orange se dá através dos príncipes Maurício (1567-1625), que não deixou herdeiros, e Frederico Henrique (1584-1647), que deram prosseguimento à luta do pai em favor da independência do Reino dos Países Baixos.

Curioso é que um dentre esses três fundadores da Casa de Orange, o príncipe Maurício de Orange-Nassau, veio a ser padrinho do conde João Maurício de Nassau-Siegen, nascido em 17 de junho de 1604. Na ocasião, presenteou seu afilhado com a bacia de prata dourada que, em 1665, passou para a igreja reformada de Kleve e hoje se encontra em coleção particular na Inglaterra.

Retornava agora, em 1639, Arciszewsky a Pernambuco com um ordenado mensal de 750 florins e mais 250 para as despesas de mesa, tendo sido postos à disposição daquele nobre polonês um secretário, um mordomo, um criado de quarto, um cozinheiro, um estribeiro e dois pajens. Regalias jamais oferecidas a qualquer outro militar em serviço no Brasil, o que logo despertou um mal-estar no comando militar do Recife.

Em face dos rancores acalentados no passado, o retorno de Arciszewsky a Pernambuco se dá em curtíssima temporada de dois meses. Chegando em 20 de março de 1639, a bordo da nau Groote Christoffel, que ostentava no topo do mastro uma grande bandeira com as suas armas, teve ele uma recepção surpresa:

Logo que pôs os pés na chalupa que o conduziria a terra, foi aberto fogo contra a bandeira do almirante que tremulava galhardamente no topo do mastro do Groote Christoffel. A bandeira foi reduzida a trapos. Arciszewski tinha de aprender a lição de uma vez por todas: havia só um almirante no Brasil e esse se chamava Willem Corneliszoon.[5]

Porém, logo que pôde tomar conhecimento dos fatos que norteavam o Governo do Brasil Holandês, o recém-chegado cabo de guerra fez ver a João Maurício, Conde de Nassau, que fora encarregado pelo Conselho dos XIX de submeter a uma inspeção os depósitos de munição e artilharia e verificar os fornecimentos feitos [...] Extremamente indignado o Príncipe [sic] escreveu a WIC que ele só podia ver naquela ordem um voto de desconfiança de que não se julgava merecedor.[6]

Estavam as coisas nesse pé quando, em maio de 1639, Arciszewsky volta à ofensiva dando conhecimento às autoridades holandesas no Recife da minuta de carta sua endereçada a Alberto Koenraats, burgomestre de Amsterdã [primeiro magistrado municipal de certas cidades da Alemanha, Bélgica, Países Baixos e Suíça, equivalente a prefeito, no Brasil], um dos diretores da Companhia, narrando calúnias, inventivas e odientas contumélias contra João Maurício.

Exasperados os ânimos, a iniciativa de Arciszewsky levou João Maurício, Conde de Nassau, a convocar os membros do Conselho Político, ocasião em que declarou categoricamente que o que haviam de fazer era escolher entre ele e o Polonês. Era sua firme resolução em renunciar ao posto caso Arciszewsky tivesse de permanecer no Recife.

Em carta datada de 25 de maio de 1639, enviada aos Estados Gerais e aos Diretores da Companhia, João Maurício mostra-se enfático:

Em Arciszewsky não temos a mínima confiança. No estado em que se acham as coisas, cumpre ao Diretório ou destituir o Polonês ou dar novo provimento ao posto de Statthalter.

E conclui Hermann Wätjen:

De balde procuram os membros do Alto Conselho e do Político conciliar as partes contendentes. Como fosse opinião geral que a retirada de João Maurício seria uma perda irreparável para a Colônia, e Arciszewsky houvesse a todos ofendido, resolveu o Conselho Diretor licenciar o Coronel Comandante e enviá-lo à pátria na primeira oportunidade de embarque. Em junho de 1639 regressou à Holanda o Polonês, para não mais voltar ao Brasil.[7]

Segundo outra fonte, naquela mesma noite, Arciszewsky recebeu a notícia de sua dispensa e poucos dias depois foi colocado, sob guarda, em um navio rumo à Holanda.
Dois meses após sua gloriosa chegada ao Brasil, estava novamente no caminho de volta, sem poder se defender de quaisquer acusações, afugentado como um cachorro sobre o mar, com rações de “feijão e bacalhau”.[8]

Encerra-se assim, de forma lamentável, o episódio da última vinda do nobre e erudito cabo de guerra polonês, a serviço Companhia das Índias Ocidentais, em terras do Brasil.

[1] Giovanni Vincenzo di San Felice (Nápoles, 1575 — Salvador, 26 de agosto de 1640), sargento-mor da Calábria inferior, do Batalhão de Guerra do Exército Real, governador, mestre-de-campo no Brasil, Conde, Marquês, Duque de Bagnolo, Príncipe de Monteverde, foi um nobre e militar italiano ativo nas guerras contra a Holanda.
[2] WÄTJEN, Hermann. O domínio colonial holandês no Brasil. Tradução de Pedro Celso Uchoa Cavalcanti. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938. (Brasiliana, v. 128). p. 161.
[3] STRAATEN, Harald S. van der. Brazil a destiny. Haia, 1984.
[4] NETSCHER, P.M. Os holandeses no Brasil. São Paulo, 1942.
[5] STRAATEN, Harald, op. cit.
[6] WÄTJEN, Hermann. O domínio colonial holandês no Brasil. São Paulo, 1938.
7] WÄTJEN, Hermann. O domínio colonial holandês no Brasil, op. cit.
[8] STRAATEN, Harald, op. cit.

* Historiador, jornalista e escritor do Recife/PE


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