sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Rude filho sem retoques da natureza

Os relatos das ações de João Ramalho, rude filho sem retoques da natureza, após seus primeiros contatos com os conterrâneos portugueses, oscilam da condenação duríssima e explícita aos seus atos e modos de vida – principalmente por parte dos jesuítas, um dos quais chegou a excomungá-lo – ao posterior reconhecimento, quase unânime, da sua importância para o sucesso de colonização do Brasil, principalmente da Capitânia de São Vicente, deixando claro que, sem a sua intervenção, isso sequer seria possível. E esse seu resgate contou com a participação dos que mais o criticaram e combateram, ou seja, dos próprios sacerdotes da Companhia de Jesus.

Sobre suas atividades antes do encontro com Martim Afonso de Souza, que se deu por volta de 1532, a enciclopédia eletrônica Wikipédia assim se refere a elas, embora sem citar fontes: “Com os filhos, estabeleceu postos no litoral para fazer comércio com europeus, vendendo índios prisioneiros para serem escravizados; construindo bergantins, reabastecendo os navios em trânsito e negociando o pau-brasil”. Como se vê, João Ramalho se virou muito bem para um sujeito inexperiente e analfabeto. Demonstrou notável espírito de iniciativa, sobretudo aguçado tino para negócios. Pode-se até dizer, sem forçar a barra, que ele já promovia, á sua maneira, por própria conta, a colonização daquela área antes mesmo da chegada de Martim Afonso, tendo em vista, claro, não a prestação de serviços para a Coroa, mas a obtenção de lucros, para enriquecer, talvez visando possível retorno a Portugal. Vá se saber!

Antes que me perguntem, informo que “bergantim”, que o aventureiro construía no litoral – presume-se que essa e outras das atividades desenvolvidas por ele, citadas pela Wikipédia, eram anteriores ao seu encontro com Tibiriçá e envolvimento sexual com Bartira – era uma espécie de pequeno navio de dois mastros e com uma única e pequena cobertura. Percebe-se, pois, que não se tratava de um vagabundo qualquer, querendo viver às custas alheias. Era, à sua maneira, um sujeito ativo, dinâmico e realizador, a despeito de brutal e tirânico. Pudera! Um sujeito bonzinho, de educação refinada, não sobreviveria talvez um único dia naquele ambiente hostil, primitivo e selvagem.

Wikipédia traz à baila algumas ações sumamente cruéis – enfaticamente condenadas pelos jesuítas, que igualmente estavam furiosos com os obstáculos que aquelas pessoas impunham à conversão dos silvícolas à fé católica. Informa: “Nas excursões pelo interior, para capturar índios para serem vendidos como escravos, os filhos de João Ranalho, mamelucos com metade de sangue indígena, comportavam-se com extrema crueldade”. Provavelmente essa prole, mencionada pela enciclopédia eletrônica, era a gerada com fêmeas guaianazes, anteriores, portanto, à ligação do aventureiro com a tribo chefiada pelo cacique Tibiriçá, que habitava o Planalto.

Interessante é o relato da Wikipédia do encontro de João Ramalho com Martim Afonso de Souza. Embora não mencione as fontes em que se baseou, se presume que elas existam e sejam relatos da equipe do representante da Coroa. Acredito que sim. A enciclopédia assim descreve esse contato: “O reencontro com os portugueses foi surpreendente. Estes esperavam uma batalha contra um grande número de índios, que caminhavam em direção a São Vicente. Em vez de uma batalha, receberam João Ramalho, que passou a usar de sua grande influência sobre a tribo para ajudar seus conterrâneos”. O que levou o tirânico e lendário aventureiro a agir assim? Por que não atacou Martim Afonso e os colonos que o acompanhavam? Se o fizesse, exterminaria, com absoluta certeza, a todos com facilidade, já que contava com superioridade de forças, respaldado por milhares de guerreiros indígenas.

Provavelmente, João Ramalho não atacou o representante da Coroa e o punhado de portugueses enviados para a região com a missão de colonizá-la, por não vislumbrar nenhum risco às atividades daquele relativamente escasso contingente. É até possível que pressentisse imensas possibilidades de lucro. Tem que se levar em conta, também, a habilidade diplomática de Martim Afonso. Afinal, este veio a se tornar amigo de João Ramalho. Tanto que, quando o cacique Tibiriçá se converteu ao cristianismo, e foi batizado, adotou o nome de Martim Afonso, certamente sob influência do controvertido genro.

Não sei vocês, mas da minha parte estou curtindo muito escrever sobre esse enigmático personagem, tendo o cuidado de ser o mais didático possível, mesmo que, para isso, tenha que estender o texto muito além do inicialmente pretendido. À medida que avanço nas pesquisas, mais surpreso fico com essa figura enigmática e misteriosa – benigna, para uns, demoníaca para outros - da qual é quase impossível separar fatos do que não passa de mera lenda. Acredito que, à minha maneira, estou contribuindo, de alguma forma, para melhor entendimento de importantíssimo capítulo da nossa História que não é sequer tratado nas escolas.

Boa leitura.


O Editor

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk.       

Um comentário:

  1. Tendemos a analisá-lo a luz de olhos atuais, o que é um erro. Estou achando sua narrativa empolgante.

    ResponderExcluir