sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Poder maluco

*Por José Calvino

“Se o mundo enlouqueceu,
  torne-se louco
  para ser sensato”
(Akira Kurosawa)


É preciso que estejamos preparados de conhecimentos que resolvam questões, pautados em observações e experiências vividas. Quando eu li uma crônica que fala de uma clínica psiquiátrica do Recife: “(...) que funcionava  mantendo em suas dependências como doentes mentais e moradores de rua...”, resolvi então registrar aqui alguns casos que aconteceram no Estado Novo e  na Ditadura Militar, que ofereciam leitos para indigentes e pensionistas a partir de convênios diversos assinados com os Institutos de Aposentadoria de então, e também com as esferas municipal e estadual de governo (O problema persiste até hoje, com propagandas enganosas, já que todos nós sabemos que o governo nunca investiu na educação, saúde e emprego digno).

Lembrei-me do que mamãe me contou  sobre um grande chalé que pertenceu à família Andrade Lima, por sinal localizado na Avenida Conde da Boa Vista, no Recife. O meu pai dizia sempre que os Andrade Lima eram primos de Francisco do Rego Barros, o Conde da Boa Vista (Vide “Os Andrade Lima”). Bom, para animar a leitura vamos para dois casos inusitados: a) “Numa tarde de verão, chegou um matuto amigo da família,  com uma maleta, de paletó com um cachecol vermelho (contrastando com o clima) em volta do pescoço. Os parentes mostraram o Recife  que o visitante não conhecia: as praias, as pontes, etc. Ao dormir no referido casarão, já tarde da noite, ele teve vontade de defecar, sem saber onde ficava a privada e, para não incomodar  o pessoal, fez a necessidade no próprio cachecol, vendo a claridade da lua, jogando os detritos pela janela e deixando o cachecol com fezes agarrado na vidraça. Envergonhado, saiu sem se despedir dos anfitriões. A casa ficou com um odor insuportável. As empregadas, para amenizar o mau cheiro, trabalharam na limpeza com lenços próximos aos narizes.” b)“A polícia ia prender um trabalhador sem flagrante delito e sem ordem judicial. Uma senhora política, parente dos Andrade Lima, não deixou os meganhas entrarem no engenho de sua propriedade e, energicamente, lhes disse: ‘Diga ao governador Agamenon, que ele venha prendê-lo.’ Resultado, os dois policiais foram presos.” Mas, essa é outra história.

Nos anos 70, uns aspirantes   a oficiais da Polícia Militar estagiavam nos quartéis e dois deles foram para o Batalhão de Radiopatrulha, que ficava próximo ao Instituto de Psiquiatria Dr. Luiz Inácio de Andrade Lima (Hospital Psiquiátrico do Recife). Um deles era conhecido como “Mordida de Porco”, apelido dado por ser ruim e porque quando estava como Oficial de Dia acionava o alarme a qualquer hora da noite, mais das vezes de madrugada, perturbando a vizinhança  e os pacientes do Hospital, até mesmo os componentes da guarda que ficavam nos seus postos atentos a um possível “ataque”. Muitos foram vítimas daquela zoada, ficando com problemas psíquicos e neurológicos, consequentemente alguns policiais militares foram reformados. Eu sou testemunha quando um neto (suponho) do doutor Luiz Ignácio foi até o quartel reclamar do tal procedimento que vinha prejudicando o quadro de saúde dos internos. O governo nunca tomou as providências em prol aos doentes mentais. Hoje o imóvel do hospital se encontra abandonado, rodeado de tapumes. 

Finalmente, registro com pesar o falecimento do Dr. Luiz Ignácio de Andrade Lima, aos 99 anos de idade. Era o médico mais antigo vivo da Faculdade de Medicina do Recife, como também era o último remanescente do grupo de professores docentes livres que fundou a Faculdade de Ciências Médicas de Pernambuco.

Estamos numa situação em que devemos ter o prazer pela leitura, como uma arma que promova a cidadania e dignidade para milhões de brasileiros.

*Escritor, poeta e teatrólogo pernambucano.


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