quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Oficina de manutenção


* Por Marco Albertim

O torno girando, veloz, zuniu como das outras vezes. O óleo derramado na navalha de aço, e no aço cru preso ao cabeçote, baixou a temperatura dos dois, inda que a custo de um fumegante vapor. 

A fumaça inalada pelo torneiro, pelo ferramenteiro e pelo ajudante, poupou o chefe da manutenção, por conta da distância de seu birô junto à porta de acesso. A porta sempre aberta dava conta de uma vintena de outras seções, onde funileiros, soldadores, duteiros, pintores e ajudantes, sem o perceber, orquestravam uma sinfonia de ferros, aços e folhas de flandres cortados ou emendados à força de soldas.

Vizinha ao almoxarifado, a oficina de manutenção, por ser o laboratório onde o aço bruto ou o ferro, mesmo sob o efeito da oxidação, convertiam-se em ferramentas próprias ao molde ou ao corte de outras, depois de usinadas, era o cérebro da produção; daí o prestígio de que gozava entre os operários; mesmo o ajudante, único com ofício ainda em formação, era visto com inconfessa inveja por ajudantes de outras seções.

César, operando o torno feito o piloto de um veículo de raro manuseio, pouco se importou com a densidade tóxica da fumaça. Com um olho na usinagem do aço e outro no ferramenteiro, no ajudante e no chefe da manutenção, tinha na boca e no nariz uma máscara de proteção. Inda que o corpo coberto com o grosso macacão sujo de óleo da cintura para baixo, os braços estavam sem proteção; nas mãos, nenhuma luva. Súbito, sua voz roufenha, de curto alcance, soltou um grito que rompeu a rotina já monótona aos sentidos de cada um dos operários.

É forçoso dizer que o torneiro era dos raros operários a fazer uso dos vales quinzenais concedidos pela fábrica. O dinheiro vinha num envelope azul, junto a um recibo onde punha sua assinatura com letras tão arrevesadas, em nada parecidas com o contorno sem diferenças gerado nos cortes do aço cru na navalha no carro superior do torno. De todos os operários, era o único a conter o suor nos poros negros de sua pele. O macacão, da cintura para cima, inda que desbotado pelo uso contínuo, não exibia traços ou manchas de óleo. César movia-se conforme a mobilidade do barramento do torno, na altura e abaixo de sua cintura; o barramento liso tinha só três metros de comprimento horizontal. Ali mesmo, sem se d espregar do barramento, acostumara-se a receber do funcionário do escritório, o envelope com o dinheiro urdido dois, três dias antes.

Oitenta operários foram surpreendidos com o grito do torneiro mecânico, correram para a sala de chão de cimento estropiado da manutenção. Viram, atônitos, o rosto de César amarelar-se feito as paredes de folhas de ferro pintadas, nos quatro lados da sala. A sua mão direita, raramente em contato físico com um dos três barramentos, prendera-se ali, à força da corrente de eletricidade vazada para o torno. A chave de força do torno ficava vizinha aos três barramentos. César demorou a recuperar a cor natural de seu rosto. O impacto do choque, no entanto, foi interrompido pelo ajudante da sala, que correra em sua direção e desligara a chave de funcionamento do torno.

O grito, a correria dos outros operários no galpão da produção também com o piso estropiado, deram um susto nos funcionários do escritório, no pavimento de cima. O dono da fábrica, cuja sala tinha uma parede de vidro transparente, dando visão para os operários no trabalho, ergueu-se de sua poltrona. Ordenou que o chefe de setor de pessoal descesse para apurar o que ocorrera. Cumprida a ordem, o chefe de setor de pessoal deu conta ao dono da fábrica, do acidente.
- Foi com o rapaz que pede um vale toda quinzena?
- Sim, respondeu o auxiliar.
- O vale já está pronto? Providenciem logo.
- Já está no envelope.

O auxiliar olhou para o boy do escritório, ordenando que levasse uma garrafa de água gelada para o torneiro mecânico. Em seguida, lembrando que o envelope com o dinheiro já estava em seu bolso, emendou:
- Não! Eu mesmo levo.

César bebeu a água e recebeu o envelope com o dinheiro, sob os olhares de espreita dos operários.

Quando o chefe de pessoal voltou para o escritório, informou ao dono da fábrica que o chefe da manutenção pedira autorização para liberar o torneiro do trabalho, pelo menos naquele dia.
- Libere-o. Mas diga que o ferramenteiro deve assumir o manejo do torno.

*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.


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